"Pessoas continuam se surpreendendo com um médico negro", diz Fred Nicácio
Abril de 2020, segundo mês da quarentena no estado de São Paulo. Em um hospital de Lençois Paulista, no interior, um homem insiste para ser internado ao se considerar com sintomas da Covid-19. O médico que o atende avalia não estarem presentes os critérios para internação, faz a prescrição e recomenda que ele vá para casa.
Na saída do hospital, irritado, mas longe do médico, o paciente dispensado se dirige ao porteiro da unidade de saúde: "Quem aquele outro porteiro acha que é? Eu ainda vou ser internado, sim."
O porteiro conta o episódio ao médico, Fred Nicácio, 33, plantonista no local. Fred é dermatologista e negro. "E o racista é, potencialmente, um covarde. Tanto que ele só disse o que disse longe de mim", faz questão de completar. Em outra situação, uma paciente (também branca) demonstrou surpresa ao entrar na sala de consulta e se deparar com o médico negro. Fez uma série de perguntas técnicas, e, recebido o diagnóstico, teria de tomar uma medicação intravenosa, no próprio hospital, antes de ir embora. "Ela não foi grosseira: parou no posto com a medicação prescrita, quis saber se 'aquele moço moreno é mesmo médico ou não?', e, diante da confirmação, negou a medicação: preferiu ir embora com dor do que seguir a recomendação de um médico preto."
Ex-modelo e com formação superior também em fisioterapia, Fred vive desde o ano passado em Bauru, para onde se mudou depois do casamento com o cirurgião dentista Fábio Gelonese. Na mesma cidade, além da clínica com o marido, atende voluntariamente no hospital de campanha para vítimas do coronavírus desde março.
O médico é também um influenciador digital, com seus quase 350 mil seguidores no Instagram. Foi por um post em 2018, por sinal, que a mensagem antirracista assimilada já desde a educação familiar começou a atingir uma plateia mais numerosa: uma foto dele com uma paciente de 74 anos viralizou. Ela, também negra, havia se mostrado positivamente surpreendida em ser atendida por um médico negro pela primeira vez na vida. Não é por acaso: segundo dados do MPT (Ministério Público do Trabalho), menos de 2% dos médicos no Brasil são declaradamente negros.
"Como médico, minha vida é um ponto fora da curva da maioria dos negros: nunca tive um colega de trabalho negro; vi uma única professora negra na minha graduação em medicina, mas ela não era médica; e nunca fui atendido por outro médico negro - o que reflete ainda o quão elitista, segregacionista e racista pode ser o Brasil, se lembrarmos que negros e pardos compõem mais de 50% da nossa população", considera.
São justamente pretos e pardos ainda os grupos minoritários nos cursos mais concorridos em universidades públicas. Medicina em primeiro lugar e odontologia, em segundo, lideram a discrepância.
Indagado sobre o que o que ainda é preciso para que haja mais médicos negros no Brasil, Nicácio prescreve a receita em que acredita: "A melhor forma de diminuirmos a desigualdade racial na medicina é aumentando as possibilidades e as oportunidades de pessoas negras ao acesso a medicina", defende. "O sonho de ser médico para uma pessoa preta já é um grande rompimento com a realidade que a maioria vive — a começar pela falta de referência, fora a dificuldade de pagar um curso pré-vestibular específico, trabalhar e estudar", complementa.
É muito difícil sonhar com algo que soa como proibido. Melhorando as políticas públicas que realmente contemplem esse tipo de aluno, a gente vai começar a mudar a cor da medicina no Brasil.
Fred Nicácio, médico dermatologista e fisioterapeuta
"Para ser bom, você tem ser três vezes melhor que uma pessoa branca"
Nascido e criado na periferia de Campos dos Goytacazes (RJ), Fred atribui à educação antirracista por parte dos pais, um bombeiro militar e uma inspetora de escola pública, a consciência com que hoje lida com situações avessas à ocupação de espaço por pessoas como ele.
"Embora meu pai não tivesse terminado o ensino médio, sempre teve muita consciência racial e me dizia: 'para ser bom, você tem ser três vezes melhor que uma pessoa branca'; nunca me esqueci disso. Meus pais investiram em mim e nos meus irmãos, como eles puderam, e eu fui aproveitando as oportunidades que a vida me colocou também como modelo fotográfico e de passarela: isso abriu muitas portas e me possibilitou muitos contatos."
Como o paciente em Lençois Paulista, Fred diz que ainda são comuns as reações de estranhamento à figura dele como profissional da medicina.
"Vejo racismo todos os dias. Por exemplo, vi muita reação do tipo: 'Mas onde está o médico?', já que, para muitos, a figura do homem negro ainda não é reconhecida como a figura do médico. Os poucos que conseguimos deixar essa linha de segregação moderna nos destacamos, por vezes somos vistos como heróis, viramos pontos de referência - e é importante ser, para outras pessoas crerem que isso é possível,", diz.
Ocupação no Instagram de Gagliasso
Fred é médico de Chissomo e Bless, os dois filhos mais velhos e adotados dos atores Bruno Gagliasso e Giovana Ewbank. Mês passado, em uma ação compartilhada por outras celebridades, Gagliasso cedeu seu perfil no Instagram para que profissionais negros ocupassem temporariamente o espaço em uma reflexão contra o racismo. A iniciativa integrou a reação antirracista no mundo ao assassinato do homem negro George Floyd, nos Estados Unidos, por ação de policiais brancos. O crime foi em maio passado.
"Eu tive uma repercussão majoritariamente muito boa quando ocupei o Instagram do Bruno, e, no geral, vejo que essas ocupações ainda são necessárias para que pessoas pretas sem voz alcancem um público maior - mas espero que, um dia, nossas vozes possam ter o mesmo peso", define.
Médicos de diferentes especialidades ligadas ao combate à pandemia têm se mostrado uma voz quase permanente de recomendações à população que nem sempre são implementadas por agentes políticos - especialmente em relação ao isolamento social, à redução dos riscos de contaminação, e à importância da vacina, em detrimento de medicamentos de eficácia não comprovada para tratar a Covid-19.
Seria então o racismo capaz de perder espaço em meio a uma pandemia que já matou mais de 700 mil pessoas e contaminou outras 20 milhões ao redor do mundo?
Fred é taxativo. "A pandemia não deu pausa no racismo: as pessoas continuam se surpreendendo ao verem um médico negro; um policial americano matou um homem negro sufocado nos Estados Unidos no meio de uma pandemia; no mesmo período, um policial em São Paulo pisou no pescoço de uma mulher negra, e crianças negras foram assassinadas por tiros, estando dentro de suas casas, em favelas do Rio", enumera. "A intenção final do racismo é enlouquecer as pessoas pretas. Como eu lido com isso? Com muita terapia."
O médico arrisca uma outra avaliação: o que a pandemia fez de diferente foi exacerbar "alguns pensamentos vorazes que já existiam em algumas pessoas", de natureza político-ideológica, devidamente moldados à saúde.
"Qualquer post que eu faça sobre meu trabalho na pandemia traz pessoas pró-governo Bolsonaro me questionando com um 'mas por que você não receita cloroquina?' - esse nível de discussão sem repertório, com meros repetidores de falas aleatórias, sem contexto, sendo que nem ministro efetivo da saúde o país ainda tem", critica.
Sindicato usa frase de Floyd para criticar "sufocamento" do comércio
No dia em que a reportagem conversou com o fluminense, um sindicato patronal ligado ao comércio varejista de Bauru lançava uma campanha digital para pressionar a Prefeitura a não restringir a abertura de lojas como estratégia de freio ao avanço da Covid na cidade - na qual a taxa de ocupação de leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) por pacientes com coronavírus, por exemplo, chegou a atingir 98% em um dos hospitais da cidade.
Na campanha, a frase "I can't breathe" ("Não consigo respirar"), repetida por George Floyd até ser morto pelo policial em Minneapolis e posteriormente símbolo de centenas de atos antirracistas pelo mundo, ganhou uma simetria particular por parte do sindicato, na peça publicitária: foi usada ao lado da mensagem "Prefeito sufoca empresário de Bauru", em sentido metafórico e alusivo ao suposto estrangulamento econômico dos negócios.
O médico lamentou a comparação.
"Se eles estão partindo do princípio de que há como comparar tipos de sufocamento, em uma situação dessas, é no mínimo repugnante", resumiu. "E também ridículo. Não se faz uma simetria dessas jamais", sugere.
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