Única brasileira em programa do Dalai Lama quer levar paz à Fundação Casa
Depois de trabalhar por dez anos como advogada, a paulistana Gabriele Costa Bento Garcia, 34, resolveu repensar a vida e o legado que deixaria para o mundo. Desligou-se da empresa em que atuava e em 2014, junto com o marido Felipe Brescancini, fundou uma ONG para promover educação em direitos humanos.
Enquanto era funcionária de um escritório de advocacia teve acesso ao trabalho das lideranças de bases comunitárias e lembra-se que estar nas comunidades era mais "encantador" do que seu trabalho advogando em processos na vara de família.
Para "sair da bolha de privilégios de dois jovens brancos" e entender os problemas que nunca tinham vivido, Gabriele e Felipe fizeram uma grande imersão. Passaram um ano viajando por 40 países para vivenciar experiências de violação de direitos humanos e desigualdades sociais. Moraram em campos de refugiados, vilarejos remotos, organizações, empresas sociais e regiões vulneráveis na África, Oriente Médio e Ásia.
"A gente queria aprender a partir da percepção das lideranças comunitárias e 'descolonizar' nosso entendimento sobre direitos humanos que sempre partia de um 'salvador branco.' Em cada país escolhíamos uma temática, no Zimbábue foi o casamento infantil; na China, a indústria têxtil e o trabalho análogo à escravidão. Depois escrevíamos reflexões e artigos", lembra Gabriele.
A jornada virou repertório para o trabalho na ONG chamada Instituto Think Twice Brasil, e a coletânea de artigos se transformou no livro digital "Experiência de Empatia pelo Mundo" (o download gratuito pode ser feito aqui).
A ONG fornece consultoria para empresas e promove a formação de educadores e lideranças empresariais sobre direitos humanos, cultura de paz, inclusão e engajamento social. A cada programa ou serviço contratado por uma empresa ou instituição de ensino particular, um similar é doado a uma escola pública ou instituição sem fins lucrativos. Desde 2015, mais de 4 mil pessoas participaram das atividades desenvolvidas pelo Think Twice Brasil.
O know-how sobre direitos humanos e um projeto já iniciado na Fundação Casa, habilitou Gabriele a ser a única brasileira contemplada pelo Dalai Lama Fellows, um movimento global de formação de lideranças mais empáticas e que tenham um olhar mais aguçado para a espiritualidade. Foram selecionados 20 bolsistas do mundo todo.
"Fiquei surpresa em ter sido a única brasileira. A ideia é trazer um olhar mais afetuoso e desconstruído para a política, como foco nas políticas públicas. Como repensar isso a partir de ferramentas de afeto e reconstrução de emoções. Que bom que existe espaço para tratar dessa temática com seriedade", comenta Gabriele.
Em dez anos de existência do programa, só houve a participação de outra brasileira, Nathalia Scherer que também é cidadã norte-americana e foi aceita na edição de 2014.
Cultura de paz e diálogo na Fundação Casa
A bolsa do programa que leva o nome do principal líder espiritual do Tibete inclui um curso online de 14 meses de duração, com acompanhamento de mentores, além de uma imersão presencial no Centro de Ciências Contemplativas da Universidade de Virginia, nos Estados Unidos, com a presença de Dalai Lama.
A viagem até a Universidade de Virginia, custeada pelo programa, aconteceria em junho, mas foi adiada em um ano por conta da pandemia do coronavírus. Todavia, em 2021, Gabriele terá de viajar com mais um acompanhante: o filho Francisco que nasce neste mês de agosto.
A formação oferecida pelo Fellow vai contribuir com um projeto iniciado pelo instituto de Gabriele de levar cultura de paz às unidades Fundação Casa, que abrigam adolescentes que cumprem medidas socioeducativas no estado de São Paulo.
A primeira fase do projeto batizado de Sulwe (significa estrela em uma língua africana) já foi concretizada. Vinte e cinco meninas internas da unidade feminina Chiquinha Gonzaga da Fundação Casa, localizada na Zona Leste de São Paulo, participaram de encontros que discutiam direitos humanos, igualdade de gênero e exercício de empatia. A missão foi inspirá-las a se reconciliarem com suas histórias para traçarem novos planos para si mesmas. "Foi superimpactante e transformador", lembra Gabriele.
"Rompimento de ciclo não benéfico"
Agora Gabriele está captando recursos para viabilizar a segunda etapa do trabalho: contribuir com a formação dos agentes que lidam direto com os adolescentes para que melhorar a relação entre eles. Será um projeto-piloto com duração de um ano para até 30 servidores que vai trabalhar temas como comunicação não violenta, racismo, machismo estrutural e abordagem afetuosa com direitos humanos.
Nesta etapa do trabalho, Gabriele vai desenvolver indicadores que avaliem o impacto social das formações e possam embasar a criação de políticas públicas mais amplas. Também haverá a captação de imagens para a produção de um documentário que aborde a relação dos agentes com os internos. O custo estimado desta etapa é de R$ 170 mil reais.
A implementação vai ocorrer por meio de uma pedagogia desenvolvida por Gabriele em seu mestrado de direitos humanos na London School of Economics (LSE), em Londres. A ferramenta prevê que as pessoas reconheçam sua responsabilidade pessoal e a defesa dos direitos humanos para si e para os outros por meio de valorização de suas próprias emoções, do diálogo e da prática da empatia.
"As emoções estão no centro da aprendizagem. O fio condutor vai ser a possibilidade de reconciliação e criação de vínculo entre internos e agentes. Temos insumos que comprovam que as dinâmicas e práticas são capazes de investigar os sentimentos de cada um de forma individual, e isso tem um impacto tremendo para interromper o ciclo de violência", explica.
Para a pedagoga da Fundação Casa Tatiana Pereira Lima, o trabalho em conjunto o Instituto Think Twice Brasil, contribui para uma mudança de cultura, rompendo com uma visão "punitivista." "A prática em uma cultura de paz possibilita momentos de maiores trocas e escuta, onde colaborará para que o próprio adolescente reflita e se responsabilize sobre os seus atos, fazendo até mesmo que se diminua a reentrada dele na instituição."
Tatiana lembra que os internos, muitas vezes, são "carentes" do acesso de direitos fundamentais. "Ao possibilitar diálogos sobre desigualdade social, racismo, preconceitos, violências, fazemos com que esse adolescente seja mais consciente de sua função social, podendo assim por vezes romper com um ciclo não benéfico para si e para o outro", complementa.
Programa de Dalai Lamai forma líderes empáticos
A missão do Dalai Lama Fellows é formar líderes por meio de um programa interdisciplinar que trabalha práticas de autoconsciência, autocuidado e resiliência para construir soluções para as gerações futuras. Com apoio de mentores, cada bolsista deve implementar um projeto de campo original abordando um desafio global. Em dez anos, o programa concedeu 175 bolsas.
A grade do curso é dividida em três eixos: "head" (cabeça); "heart" (coração) e "hands" (mãos). Na primeira etapa, o objetivo é treinar a mente, explorar as relações com as emoções, por meio de meditação e cultivar práticas que melhorem a autoconsciência.
No módulo "heart", os participantes trabalham as habilidades socioemocionais e como é possível se tornar mais compassivo e empático. Por fim, em "hands" o programa ensina aos escolhidos a se reconhecerem como líderes mais virtuosos, além de mostrar como é possível aplicar o conhecimento em benefício do mundo e no enfrentamento das desigualdades sociais.
"Entramos em uma plataforma e conseguimos ter acesso aos módulos, mas uma ou duas vezes por mês temos o encontro com a coach. Há partes teóricas e práticas, exercícios de meditação e em um dos módulos dá para entender as questões de neurociência e como ela se relaciona com corpo e mente", conta Gabriele. Segundo ela, a partir do momento que bolsista entra no programa, faz parte de uma rede que está sempre conectada e que pode ser acionada para ações realizadas pelo Dalai Lama Fellows.
O programa é destinado para jovens de 20 a 35 anos, fluentes em inglês e engajados em projeto de mudança social em sua comunidade local. O processo seletivo inclui análise de currículo, redação, carta de recomendação e vídeo.
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