"Não é o agronegócio quem põe comida na mesa", diz advogada
Pagar uma consultoria jurídica com uma faxina? No mercado tradicional, cada um desses serviços teria valores bem discrepantes, mas no Banco de Tempo Brasília isso é possível. Na iniciativa criada há três anos, mais de 1400 associados podem trocar uma hora de seu talento pelo mesmo período do talento de outra pessoa. Para a cofundadora Nádia Nádila, o banco dá exemplo de como é possível adotar, no cotidiano, práticas que fujam da lógica de exploração e priorizem a acessibilidade de todos.
Ecossocialista convicta, a advogada de 30 anos compartilha, nessa entrevista, suas crenças e os caminhos possíveis para um outro futuro no Brasil pós-pandemia. Um futuro no qual a noção de trabalho esteja menos atrelada ao acúmulo individual de bens, e mais próxima do benefício coletivo no campo, na cidade e na floresta.
Para isso, Nádia Nádila ratifica que "não existe luta ambiental no capitalismo" e questiona a priorização do agronegócio que, embora leve a fama de alimentar as famílias brasileiras, está diretamente conectado à exploração desenfreada da natureza e das pessoas.
"Não é ele [agronegócio] quem coloca leite e verdura na mesa do brasileiro. Quem faz isso é a agricultura familiar, ainda que com menos insumos, menos recursos. A produção do agronegócio é de exportação e é ele quem mata a população indígena, quilombola, e é o maior responsável pelo desperdício de água, junto da indústria".
Ecoa/Data_labe: O Banco de Tempo de Brasília se baseia no que vocês chamam da relação entre o paradigma da abundância versus paradigma da escassez, numa compreensão de que temos recursos suficientes para todos, mas nosso modelo de viver em sociedade se desdobra em uma má distribuição. A pandemia evidencia isso, com o acirramento das desigualdades. Como o banco se diferencia dessa lógica?
Nádia Nádila: O banco se propõe a impulsionar o outro a pensar além de si, a entender a importância da coletividade. O capitalismo é esperto porque não incentiva o restringir. É uma cultura de incentivo ao que se deve ter, numa lógica em que se trabalha para acumular. Toda a nossa fase educacional é pautada para que a gente seja uma peça desse sistema. Se eu sei inglês, eu sei para mim, não para ensinar o outro. Todo conhecimento vira produto. O paradigma da escassez e o paradigma da abundância vão apontar que temos condições para que ninguém passe fome, mas que os recursos estão concentrados nas mãos de poucas pessoas, de poucos bilionários.
O primeiro ponto do Banco de Tempo Brasília é que ele defende uma relação de igualdade. Não importa quanto conhecimento você investiu para dominar aquela atividade, o que vale é o tempo que você doa. Por exemplo, eu sou advogada, uma consultoria jurídica vai sair no mercado hoje a aproximadamente R$250, enquanto uma faxina aqui em Brasília pode ser paga por R$70. No banco, essa diferença não existe. Os dois serviços terão o mesmo valor: uma hora de cada um.
O segundo ponto é que o banco funciona com trocas indiretas. Você oferta o que você gosta de fazer e tem condição de obter serviços pelos quais talvez não poderia pagar, como uma sessão de acupuntura. O banco preza pela acessibilidade e defende que você ofereça não apenas aquilo que você tem formação, mas o que gosta.
Existe, então, um papel educativo, já que a troca não considera um saber maior que o outro, diferente da forma como o capitalismo ranqueia e monetiza. Existem outras atividades que o banco realiza nesse sentido da conscientização? Qual é esse impacto?
A gente acredita no potencial de conscientização do banco como uma outra forma de ver o mundo e as relações com o outro e com a natureza. É o tal conceito do Bem Viver, que se pauta na inclusão do outro e não da exclusão, e que dá nome ao nosso coletivo - Sociedade do Bem Viver - que conecta quem trabalha com agricultura familiar com quem deseja consumir comida sem veneno.
Atualmente, temos comunidades agroecológicas em Brasília, com o Movimento Sem Terra, e em Florianópolis, com comunidades indígenas guarani, num trabalho de fortalecer quem está no campo e não consegue escoar sua produção. Não tem essa de estou na cidade, logo não penso na natureza. As comunidades vão falar sobre soberania alimentar e questionar quem tem acesso a esse tipo de alimento.
Os projetos estão conectados: O Banco do Tempo, o Bem Viver, e o Subverta, organização política da qual faço parte e que pensa a conexão, vínculo e semelhanças entre campo, floresta e cidade. Todos os projetos estão interligados por essa concepção do Bem Viver, que foi adotada aos poucos pelo Banco, conforme fomos entendendo que o tempo não é linear, que é cíclico. Então, investimos na popularização do banco falando sobre ele nas escolas, em rodas de conversa nos territórios e a partir dos projetos sociais. A gente tem que pensar o território, pois é onde a gente se constitui como pessoa.
O banco possui três formas de trocas: as individuais, em que uma pessoa oferece um serviço e ganha uma hora de tempo para trocar pelo que quiser; as em grupo, em que alguém oferece um serviço para mais de uma pessoa, contabilizando apenas uma hora e doando as demais horas para um caixinha, e os projetos sociais, em que quem participa ganha recompensa em horas. Dessa forma, a gente tem os associados participando das ações sociais, como o Mutirão de Bioconstrução do Sol Nascente, em 2017, quando construímos a casa da Tia Alzerita junto com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Mais de cem famílias ganharam as terras, mas o governo dá um prazo para construir e, se não cumprem, toma as terras de volta. Então a ideia era levantar uma construção de pau a pique, com uso de barro, de bambu e outras matérias-primas e demonstrar que ela é mais barata, mais ecológica, mais acessível e tem boa durabilidade em relação às construções de alvenaria.
Esse momento me mostrou o quanto as pautas da negritude estão conectadas com outros temas, como a água e o direito à moradia por exemplo. Se eu falo de mulheres negras, eu falo de saneamento básico, do mundo do trabalho, está tudo interligado. Muito se fala sobre o quanto a esquerda abandonou a base e precisa retomá-la, se reconectar com as pessoas que formam a base da pirâmide social, que sustentam todo esse sistema, que são quem realmente detém o poder, mas que não consegue se enxergar na coletividade, porque o capitalismo mina isso. Ele pensa o agora, o quanto eu consigo crescer individualmente. E aí a gente chega numa crise sanitária que se desdobra em crise social, econômica, política.
Quem pensou muito essa questão foi o Partido dos Panteras Negras. Eles investiram numa estratégia de autodefesa para combater a violência policial até perceberem que havia pessoas sem ter o que comer nas comunidades. Nos deixa essa provocação de como fortalecer os sujeitos por eles mesmos.
Mas existe um limite para a economia solidária, certo? De alguma forma ela ainda é micro.
Temos 1400 associados em quase três anos de funcionamento, e com seis mil membros no Facebook, que é onde as trocas são definidas. Estamos num momento de transição para uma nova plataforma. Mas vale fazer uma autocrítica. Hoje a maior parte dessas pessoas pertence à classe média de Brasília. Se é uma plataforma online, não vai chegar com facilidade na favela e na periferia.
Outros bancos de tempo como o de Portugal, o de Barcelona, têm uma estrutura física, o que facilita o acesso dos participantes. O banco possui uma equipe diversa, de diferentes correntes, então não posso afirmá-lo como ecossocialista. Ele se propõe a pensar relações comunitárias e de vizinhança que possam estar mais fortalecidas, criar vínculos em um sistema que o tempo todo nos fragmenta, nos coloca em caixas. O banco de tempo é transicional. Tem gente que se cadastra e pergunta se consegue pagar em horas a luz, a água, o aluguel, então tem esse limite.
É aí que entra o ecossocialismo como uma proposta de modo de vida em que as relações não sejam tão desiguais?
Estamos num sistema que explora, oprime e destrói. Explora a mão-de-obra, o modo de vida das pessoas e deixa os meios de produção na mão de poucas pessoas. Oprime mulheres e quem são elas? São as mulheres do campo, a juventude negra, as pessoas LGBTQI+... [Oprime] por raça, por cor. E ele destrói o meio ambiente pelo agronegócio, as mineradoras, as hidrelétricas. O planeta não dá mais conta!
O ecossocialismo rompe com esse sistema e diz que não existe luta ambiental no capitalismo, que não há como ter desenvolvimento sustentável, que crescer com respeito ao meio ambiente é impossível num planeta finito onde as pessoas consideram a natureza um recurso. Não dá para manter essa lógica de que tudo é um produto. A mídia e o governo tentam valorizar o agronegócio, mas não é ele quem coloca leite e verdura na mesa do brasileiro. Quem faz isso é a agricultura familiar, ainda que com menos insumos, menos recursos. A produção do agronegócio é de exportação e é ele quem mata a população indígena, quilombola e é o maior responsável pelo desperdício de água, junto da indústria. Portanto, a mudança tem que ser estrutural.
O ecossocialismo rompe também com o socialismo produtivista do século 20, porque não adianta tomar os meios de produção e continuar explorando combustíveis fósseis. Precisamos de uma consciência ecológica. Existe um preconceito de que o ecossocialismo quer voltar à Idade Média e abandonar toda a tecnologia que temos hoje, o que não é verdade. O que queremos é repensar a forma de utilizar essa tecnologia. São três pilares: o que é necessário extinguir, modificar e criar. Se destrói a camada de ozônio, vale extinguir.
E o que você indicaria como primeiros passos para que a gente, como sociedade, possa subverter essa lógica que se mostrou tão nociva nesse contexto da pandemia?
É fundamental se organizar politicamente de forma coletiva, seja nas escolas, nos partidos, nas organizações e compreender que as lutas estão conectadas. Defender uma política de cotas, por exemplo, é ter uma visão do todo, entender que o acesso à educação reflete em outros aspectos sociais. Portanto, vale fortalecer a luta pela reforma agrária e a demarcação de terras indígenas, comprar do pequeno agricultor, participar de abaixo-assinados, acompanhar os debates sobre mudanças climáticas. Até mesmo as pequenas ações como compartilhar uma informação verdadeira, comparecer a uma manifestação, assistir a uma live da APIB [Articulação dos Povos Indígenas do Brasil] são um caminho ecossocialista.
Existe uma concepção de enxergar um modo de vida diferente como algo muito utópico, mas se a utopia é a capacidade de sonhar, a gente não pode abrir mão dela. A utopia é o que nos movimenta. Anos atrás as mulheres poderem se divorciar era uma utopia. E isso não as impediu de pensar que outra vida era possível.
Colaborou Fred Di Giacomo (edição), do data_labe
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