"Imprensa tem dificuldade de reconhecer seu racismo", diz professor da USP
O que acontece quando, em um país onde 54% da população é negra, a tarefa de informar fica nas mãos de brancos? Segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), no Brasil, apenas 22% dos jornalistas com carteira assinada em 2015 eram negros. O que essa desigualdade manifesta na prática?
Os impactos dessa falta de representatividade são inúmeros, segundo o doutor em Comunicação Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), onde também é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados e coordenador científico do Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc). Um deles é o fato de o jornalismo brasileiro viver em uma "bolha de fontes" - ou seja, ouvirem os fatos, opiniões, visões e versões sempre de figuras frequentes ou validadas por um circuito de relacionamentos dos jornalistas brancos. Esses profissionais viveriam, então, um "pacto narcísico da branquitude": jornalistas brancos preferem fontes brancas e o círculo se fecha.
Em entrevista a Ecoa, Dennis considera que ouvir outras vozes em diferentes temas da cobertura - economia, políticas, esportes, culturas - mudaria a lógica atual, gerando oportunidades para intelectuais negros, além de proporcionar visão mais plural dos acontecimentos. O professor da USP classifica como grave o fato da "branquitude do jornalismo" não contribuir para que o déficit democrático de pessoas negras e periféricas seja enfrentado. E ressalta que o maior problema do racismo brasileiro é o fato de as instituições terem dificuldades de reconhecê-lo na prática.
Prevalece a ideia de que o racismo é um comportamento disfuncional de determinadas pessoas más ou mal-educadas e não produto de uma estrutura.
Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP)
Leia abaixo os principais pontos da entrevista:
Ecoa - Por que há tão baixa representatividade de pessoas negras na imprensa, tanto como fonte quanto entre os jornalistas?
Dennis de Oliveira - Historicamente, o racismo estabelece uma presença majoritariamente branca nos espaços de poder - em todos as dimensões: poder político, econômico, acadêmico, cultural. E isto contamina o jornalismo brasileiro, que ainda privilegia fontes oficiais nas suas coberturas. Por conta disto, há uma maioria branca nas fontes.
Mesmo com as ações afirmativas implantadas no Brasil a partir de 2003 e com a existência de vários intelectuais negros e negras, as redações jornalísticas reproduzem estas práticas racistas dando preferência a fontes brancas.
O maior problema do racismo brasileiro é o fato das instituições terem dificuldades de reconhecê-lo na prática. Há denúncias de casos de preconceito explícito, entretanto, não discute a presença majoritariamente branca nas redações (ainda que, por conta das ações afirmativas, tenhamos vários jornalistas negros formados) e nas fontes. Quando isto é apontado, sempre há um desconforto, principalmente porque está se questionando os privilégios da branquitude. Com uma redação majoritariamente branca, estabelece-se o que a psicóloga e colunista da Folha, Cida Bento, chama de "pacto narcísico da branquitude": jornalistas brancos preferem fontes brancas e o círculo se fecha.
Um levantamento da Lójúkojú (ação antirracista de divulgação e produção de dados para combater o racismo), mostra que, entre 2016 e 2020, de todos os 205 entrevistados do programa Roda Viva, da TV Cultura, apenas 13 eram negros. Há tão poucas pessoas negras relevantes para serem entrevistadas?
Não, há muitas fontes negras importantes para serem entrevistadas, e não apenas para discutir relações raciais. O jornalismo brasileiro vive em uma bolha de fontes. Os jornalistas, a maioria brancos, vivem em determinados circuitos de relacionamentos, em geral, próximos a estas instâncias de poder e reproduzem isto na escolha das suas fontes. Praticam o pacto narcísico da branquitude.
Há fontes negras com competência para discutir qualquer tema - política, economia, esportes, ciência. Mas o racismo brasileiro estabelece lugares fechados de concessão de fala a negras e negros. Antes, os únicos espaços concedidos eram os de atividades lúdicas (música e futebol). Agora acrescentaram também o tema do racismo. O professor Silvio Almeida, por exemplo, é um eminente jurista com total competência para discutir polêmicas neste campo, como a Operação Lava-Jato, a judicialização da política, entre outros. Quando ele foi chamado para discutir isto ou foi convidado para entrevistas com personalidades como o ex-juiz Sérgio Moro? Nunca. Ele só foi chamado para falar de racismo estrutural por conta dos movimentos que eclodiram a partir do assassinato de George Floyd.
Há outras pessoas importantes como a própria Cida Bento, a jornalista Rosane Borges, estudiosa de aspectos estéticos e políticos da sociedade contemporânea; o professor Ricardo Alexino, que faz uma discussão interessante sobre a mercantilização da agenda da diversidade nos tempos atuais e tantos outros.
O número de entrevistadores negros convidados pelo Roda Viva também é irrisório. Nesse caso, falta um esforço para garantir a diversificação de vozes entrevistadoras?
Sim. O jornalismo está criando uma nova "guetificação" temática e de permissão para negras e negros. Estes entrevistadores negros são chamados somente quando os convidados são pessoas negras que vão tratar de assuntos relacionados à temática racial. E vou além: quantos chefes de redação e diretores de programas, como o Roda Viva, são negros? Novamente entramos na branquitude dos espaços de poder.
Com essa baixa representação, estamos reféns de uma história e visão únicas? O que essa baixa representatividade provoca?
Sim, esta baixa representatividade - não apenas de negras e negros, mas de perspectivas negras (e também indígenas) - universaliza o olhar branco e eurocêntrico, e transforma a opinião pública em refém de uma narrativa única. Por isto, resolver o problema da representatividade nas redações dos jornais é fundamental, não apenas para a geração de oportunidades para intelectuais negros, mas para proporcionar uma visão mais plural dos acontecimentos.
Os protestos pela morte de George Floyd criaram uma onda antirracista. O senhor vê mudanças nas estruturas? Quais caminhos podemos traçar para evoluir por uma mídia mais diversa?
Despertou um sentimento que estava represado. A frase dita por George Floyd - "não consigo respirar" - sintetiza este sentimento. Não consigo respirar pelo estrangulamento do policial, por conta da fome, da miséria e da mortalidade da Covid-19.
O que vai ficando nítido é o esgotamento das possibilidades civilizatórias do capitalismo. No caso do Brasil, a situação é ainda mais grave, porque o processo de transição da ditadura militar para a democracia foi feito com acordos e não houve um ajuste de contas com o sistema repressivo anterior. O que houve foi o redirecionamento das tecnologias de repressão para as periferias, fazendo o negro ser o "inimigo interno".
Por isso, as periferias, onde vive a maior parte da população negra, convive com invasões de domicílio sem mandados judiciais, prisões ilegais, execuções extrajudiciais e alguns casos até toques de recolher. Programas televisivos dito "jornalísticos" expõem à execração pública rostos de pessoas capturadas pela polícia sem que estas sequer tenham sido julgadas. A presunção da inocência vai para o espaço.
Por isso, mais de 35 anos após o fim do ciclo militar, e pouco mais de 15 anos de ações afirmativas, podemos dizer que a democracia não chegou para o conjunto da população negra, em especial a da periferia. Pois, se esta tem o direito a voto, não tem a plenitude dos seus direitos civis - e sociais, menos ainda.
O que considero mais grave desta branquitude no jornalismo é justamente não contribuir para que este déficit democrático seja enfrentado. No fim, o jornalismo, que está diretamente vinculado à defesa dos valores democráticos, acaba por não cumprir o seu papel. Considero que este problema do racismo no jornalismo é de ordem ética e democrática.
O senhor pode apontar que tipo de equívocos ou deturpações da história a imprensa cria por não ter vozes diversas?
A cobertura das cotas raciais no Brasil, por exemplo. O jornalismo brasileiro centrou a discussão nos artigos opinativos, com opiniões favoráveis e contrárias — esta, na sua maioria. As opiniões contrárias se centravam nos argumentos de pessoas brancas de que as cotas iriam piorar o nível de ensino, de que iria aumentar o racismo nas universidades. Entretanto, não me lembro de reportagens que procuraram saber a opinião dos próprios estudantes cotistas sobre isso. Outra coisa, muito comum, nas abordagens de assuntos econômicos são pessoas brancas ligadas ao mercado financeiro e empresarial comentando medidas que atingem majoritariamente a população negra, como aumento do salário mínimo, reforma da previdência, reforma trabalhista. As pessoas atingidas por estas medidas são ouvidas? Com isto, gera-se a opinião de que o benefício de um salário mínimo recebido por uma mulher negra que trabalhou a vida inteira como doméstica é o culpado pela crise econômica.
Houve um episódio recente em que a professora Lilia Schwarcz criticou um filme dirigido pela cantora Beyoncé usando, entre outros argumentos, o de que a artista não deveria narrar a ancestralidade africana de forma glamurizada. Por que os brancos se sentem tão à vontade em dizer como a negritude deve se comportar? E por que há tão poucos negros nos espaços de opinião dos grandes jornais?
A crítica da professora Lilian Schwarcz tem uma série de equívocos. O principal deles é o caráter eurocêntrico de classificação das imagens em "modernas" e "selvagens ou bárbaras" a partir de determinados elementos simbólicos que aparecem na obra. Ela interpreta como alusão a um estado selvagem o fato de haver pessoas vestidas de onça, quando estas representações não são indicativos de estado de barbárie. Há representações de figuras ancestrais encenadas por pessoas usando peles de onça. O clipe tem um forte tom afrofuturista, de conexão com imagens ancestrais estilizadas, com estilo futurista tanto no design como na música.
Mas a antropóloga usa como referenciais os símbolos clássicos da modernidade eurocêntrica, como narrativas das tradições helênicas - e isto é muito interessante porque autores como Enrique Dussel, Samir Amin e Annibal Quijano já demonstraram como esta perspectiva moderna eurocêntrica se julga a única herdeira das tradições helênicas, e que sua concepção de tempo e espaço é universal. É justamente esta narrativa eurocêntrica que dá base para que a intelectualidade branca se julgue como árbitro universal para avaliar qualquer manifestação, mesmo a da negritude.
Essa universalização do eurocentrismo branco é um dos motivos de que perspectivas diferentes desta sejam desconsideradas nas páginas de opinião dos jornais. Basta ver como estes mesmos jornais, por exemplo, priorizam a cobertura internacional dos países do continente europeu e Estados Unidos e desprezam o continente africano e o latino-americano.
Lilia Schwarcz publicou pedido de desculpas nas redes sociais após a repercussão do texto, afirmando que não deveria ter aceitado o convite — "seria melhor uma analista ou um analista negro estudiosos dos temas e questões que a cantora e o filme abordam", escreveu.
Neste momento, temos visto várias reprises de programas televisivos e de novelas. Em "Fina Estampa", produzida em 2010/2011 há poucos negros representados, e são retratados como submissos. Essa realidade melhorou de lá pra cá?
Sim, por conta da pressão do movimento negro. Entretanto, ainda prevalece a ideia de que o racismo é um comportamento disfuncional de determinadas pessoas más ou mal-educadas, e não produto de uma estrutura. Aí vem a ideia de que a luta contra o racismo é meramente um conflito moral entre o bem e o mal, bem típico das ficções televisivas seriadas.
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