Aos 18 anos, ela criou projeto para levar bioabsorventes a detentas
Qual a primeira coisa que você faz ao acordar? Vai ao banheiro; lava o rosto; olha a tela do celular são algumas respostas frequentes. Mas, e se onde você mora não existisse um banheiro, tão pouco condições básicas de higiene?
Foi a partir desse questionamento que uma ideia começou a surgir, ainda que inconsciente, para a jovem Giullia Jaques, de 18 anos. "Acho que até aquele momento eu tinha dificuldade em pensar em coisas a que eu podia ter acesso e outras pessoas não, porque venho de uma família muito pobre de Belford Roxo", diz a adolescente da baixada fluminense.
Aos 14 anos, Giullia Jaques começou a trabalhar para ajudar a mãe nas despesas de casa, paralelamente aos estudos. A rotina de trabalho começava com o preparo diário de quilos de brigadeiro, que seriam vendidos em restaurantes locais.
As notas no boletim de Giullia não eram as melhores, mas isso sempre foi inversamente proporcional à inteligência, determinação e perspicácia da jovem, hoje com quase 19 anos.
"Estudei no colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, e lá foi um palco para me descobrir dentro das causas sociais e aprender sobre justiça social. Mais tarde comecei a ligar esse ativismo ao empreendedorismo, então isso tudo me levou a alguns outros programas, como por exemplo a LaLa", conta. A Latin American Leadership Academy, (LaLa) é uma escola de liderança que promove uma semana de workshops em diversas cidades da América Latina. Ela fez uma "vaquinha online" para o dinheiro das passagens e seguro saúde e voou para Lima, no Peru.
"Na palestra da ONG X-Runner, que pelo nome não tem como saber o que eles fazem, eles começaram com uma pergunta, 'o que vocês fazem quando vocês acordam?' Uns disseram que vão ao banheiro, que olham o telefone, lavam o rosto, e nos interromperam com a pergunta: 'e se vocês não tivessem acesso a um banheiro?', 'se vocês não tivessem nem uma privada?'", Giullia conta que a partir daí começou a questionar o que era essencial para nós, e que algumas dessas coisas tidas como básicas algumas comunidades vivendo perto de nós sequer têm acesso. "E o trabalho deles é de justamente construir banheiros em comunidades carentes de Lima", completa.
"Daí eu comecei a fazer uma lista: tenho apoio emocional, o amor da minha mãe, internet, mas precisava de algo prático. Anotei 'remédios', o que me levou a remédio para cólica e aí logo embaixo eu anotei 'absorventes'. Parece que aquela palavra estava piscando na lista, e eu comecei a me perguntar, 'quem é que não tem acesso a absorventes no Brasil e como essas pessoas vivem?'", lembra.
Como uma anotação virou o Absorvidas
A jovem não precisou ir longe na digressão até chegar na situação das detentas, que além da liberdade, são privadas de cuidados básicos de higiene pessoal e íntima. Assim, Giullia começou a pesquisar sobre as condições de vida das mulheres presas, assistiu a documentários, procurou dados, e foram pelos livros "Prisioneiros", de Drauzio Varella, e "Presos que menstruam", de Nanda Queiroz, que soube de relatos desesperadores, como utilização de miolo de pão ou jornais para substituir os absorventes íntimos.
A partir dessa realidade, ela criou, em agosto de 2019, o projeto "Absorvidas" que pretende produzir bioabsorventes e distribuí-los a 2 mil detentas da Penitenciária Talavera Bruce, em um projeto piloto - seu objetivo maior é acabar com a pobreza menstrual e ampliar a ideia inicial, transformando a produção dos bioabsorventes em um trabalho feito pelas detentas, gerando renda e que, mesmo durante o cumprimento da pena, essas mulheres sejam reintroduzidas na sociedade.
Ela buscou parcerias para desenvolver o projeto. Foram mais de 20 empresas, e só a Herself retornou o contato. A empresa, do Rio Grande do Sul, produz calcinhas menstruais, mas também absorventes de tecido. O bioabsorvente é feito a partir de matéria-prima tratada com tecnologia bactericida, oferecendo mais segurança para as pessoas que menstruam. E o melhor: tem custo baixo, é reutilizável, tem duração de dois anos em média e, como não usa plástico na fabricação, não gera lixo.
Com cálculos na ponta da língua, Giullia fala sobre o objetivo do piloto: "Temos 1.794 mulheres encarceradas no Estado do Rio de Janeiro, mas vamos jogar um número pra cima, vamos arredondar para 2 mil e afirmar que todas elas menstruam. Se cada uma delas precisasse de quatro bioabsorventes, seriam 8 mil unidades. Se ainda produzíssemos mil a mais, porque a gente sabe que tem muita gente entrando e saindo todo dia, somando os custos de matéria prima e produção, não chega a R$ 25 mil. Se usássemos tecidos ainda mais baratos para diminuir o custo a R$ 15 mil... Essa conta me dá indignação por que o problema existe, mas também existe uma solução." Até final de 2019, apenas 17% dos R$ 74 milhões da verba federal para investimento em presídios havia sido executada via Fundo do Departamento Penitenciário Nacional.
Desde a metade do ano passado, Giullia e mais três jovens voluntárias desenvolveram desde a estratégia, a identidade visual, as redes sociais e uma campanha de financiamento coletivo para colocar o piloto de pé.
O Absorvidas tem um plano a longo e a curto prazo. "A gente acredita que dignidade menstrual se dá ao acesso não só ao produto menstrual, que no nosso caso seria o bioabsorvente, mas também acerca do conhecimento sobre o ciclo menstrual, a educação. Nos dois planos, teremos oficinas, palestras e material impresso sobre educação menstrual. No curto prazo, o bioabsorvente chega à penitenciária em forma de doação produzido pela Herself. É por isso, justamente, que temos a campanha no ar." A arrecadação pela campanha na plataforma de financiamento coletivo visa cobrir todos os gastos, de insumos à logística. Nada fica para remuneração dela e da equipe.
A ideia a longo prazo, é viabilizar, após o piloto ter sido bem sucedido, que as detentas trabalhem em parceria com a Fundação Santa Cabrini, vinculada à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP), que atua como braço social do cumprimento da pena no Estado do Rio de Janeiro, e é responsável pela gestão da mão de obra prisional do Rio. As mulheres receberiam salário por esse trabalho, o que é previsto em lei.
"Eu já tive a oportunidade de visitar a penitenciária Talavera Bruce, e tem maquina de costura lá, tem mulheres que sabem costurar", explica a jovem. Sonhando mais longe, Giullia pensa nessas detentas produzindo os bioabsorventes para enviar para outras penitenciárias e, quem sabe no futuro, para todo o Sudeste, criando uma rede de acolhimento e devolvendo dignidade a outras mulheres encarceradas.
"Mas aí entra a pergunta, o Estado está disponível a entrar pagando a mão de obra? Será que tem como a gente realocar os fundos que supostamente deveriam ir para comprar absorventes e investir no nosso projeto? São respostas complicadas por diversos motivos, inclusive pelo cenário político atual", diz.
Giullia é realista quando pensa na relação do Estado. "A dignidade das vidas encarceradas é ferida de diversas formas e, enquanto o Estado não pensar em segurança pública considerando essas vidas, nosso projeto é um curativo que dura dois anos, apenas".
Saiba como ajudar
A campanha de financiamento coletivo do projeto Absorvidas pretende arrecadar R$ 30 mil reais. As doações podem ser feitas pela plataforma Benfeitoria.
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