Conhecer lei é essencial para exigir aborto legal, dizem ativistas da AL
O caso da menina de 10 anos que engravidou após anos de violência sexual, reacendeu o debate sobre como fazer cumprir o Código Penal, que desde 1940 prevê a possibilidade de aborto em caso de estupro no Brasil. Apesar de ter o direito e de essa ser a vontade da família, a garota teve que viajar 1.500 km, saindo de Vitória, onde o hospital se recusou a fazer o procedimento, até Recife, onde ele foi realizado na semana passada.
A pressão de grupos religiosos, o pedido à Justiça (desnecessário, segundo as normas brasileiras) e a recusa de atendimento mostram os desafios que mulheres e meninas passam todos os dias para ter acesso à interrupção da gestação nas situações já previstas em lei.
"Esse caso mostra claramente a perversidade da criminalização do aborto no Brasil, porque há um impacto, um reforço do estigma, inclusive quando ele é permitido, como nas situações de estupro", afirma a advogada Gabriela Rondon, pesquisadora e consultora jurídica da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Para discutir como tentar mudar essa realidade, o Ecoa ouviu especialistas para saber de que forma vizinhos latino-americanos têm tentado avançar nesse sentido.
Historicamente, pode parecer irônico que o Brasil precise agora se inspirar em iniciativas vizinhas. Isso porque, entre as latino-americanas, as organizações feministas brasileiras foram protagonistas na articulação e na defesa do aborto como questão de saúde pública nas conferências da ONU (Organização das Nações Unidas) realizadas no Cairo (1994) e em Pequim (1995), que trataram do tema.
O Brasil foi também o primeiro da região a produzir, nos anos 2000, normas técnicas sobre aborto legal para respaldar o trabalho de profissionais de saúde. Assim, tanto o texto "Atenção Humanizada ao abortamento", primeira edição de 2005, quanto "Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes", em vigor desde 1999, definem, por exemplo, que não há exigência de boletim de ocorrência nem decisão judicial para interrupção de gestação resultante de um estupro.
"Há 20 anos, o Brasil era uma referência para toda a América Latina. Foi onde primeiro as feministas lutaram, fizeram muita incidência política. Vocês foram a nossa inspiração para a construção de uma norma de aborto legal para o setor de saúde, mas reconheço que nos últimos anos o Brasil parece ter andado para trás", diz Veronica Cruz, diretora e umas das fundadoras da organização Las Libres, que atua no México na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
"[Na Argentina,] O nosso primeiro protocolo de ILE [sigla em espanhol para interrupção legal da gravidez], de 2007, tomou como exemplo o modelo brasileiro", diz a médica e pesquisadora titular do Cedes (Centro de Estudios de Estado y Sociedad), Mariana Romero, uma das revisoras do documento revisado, lançado em 2019.
O problema é que o protagonismo brasileiro na região parece ter estacionado neste momento. Enquanto nos últimos anos se fortaleceram os grupos conservadores no Brasil, outros países avançaram não só no cumprimento das lei em vigor, como ampliaram o debate e as possibilidades legais de interrupção da gestação.
Assim, a Argentina conseguiu aprovar, em 2018, pela primeira vez na Câmara dos Deputados um projeto que previa a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação. No México, onde o tema é tratado nos Códigos Penais de cada Estado, o aborto já é legal na Cidade do México e em Oaxaca. Da mesma forma, o Uruguai permite a prática em qualquer situação até a 12ª semana de gravidez desde 2012.
México: ação feminista e pressão internacional
Em 1999, o caso de uma adolescente de 13 anos estuprada em casa durante um assalto teve forte impacto pelo cumprimento da legislação sobre aborto. À época, a adolescente buscou o serviço de saúde do Estado da Baja Califórnia e não conseguiu interromper a gestação, prevista em lei.
O caso foi levado à Corte Interamericana dos Direitos Humanos e terminou em acordo entre a família e o Estado da Baja Califórnia, que reconheceu as violações cometidas contra a jovem e teve que pagá-la uma indenização pelos danos sofridos. Além disso, um dos pontos acordados foi a construção de uma normativa federal que estabelecesse como deveriam ser abordados esses casos.
"Como sociedade, temos que exigir do Estado o cumprimento da lei, derrubar os mitos e os estereótipos de gênero, que existem especialmente nos casos de estupro. E é preciso que haja sanções judiciais, denúncias de hospitais e servidores públicos que não estão garantindo esse direito", diz Veronica Cruz.
Assim como no Brasil, a norma mexicana define a não obrigatoriedade da apresentação de boletim de ocorrência ou decisão judicial para a interrupção da gestação em caso de estupro. No México, cada Estado tem leis diferentes em relação ao aborto, mas em caso de violação ele é legal todo o país.
"Decidimos combater o estigma, exigir o aborto como um direito e confrontar o Estado para que cumpra a lei. Quando chegávamos com uma mulher grávida de um estupro, não perguntávamos se o serviço ia resolver, mas como seria feito. Porque eles tinham que atendê-la sim ou sim", afirma Veronica.
A própria organização em que ela atua, Las Libres, surgiu em meio à aprovação de uma lei estadual que ia contra a normativa federal e tentava barrar o aborto em caso de estupro em Guanajuato em 2000. Os protestos e a denúncia nos meios de comunicação funcionaram, e o governador voltou atrás e vetou a lei aprovada pelo seu partido, o PAN, que era maioria entre os deputados.
"Nós atuamos em um Estado estigmatizado como o mais conservador, com leis muito restritivas e presença forte da Igreja Católica. Mas desde 2016 somos um dos que oferecem maior acesso ao aborto em caso de estupro", diz a diretora de Las Libres. "E mesmo sendo um berço dos grupos anti-direitos no México, nunca vi em Guanajuato pessoas na porta de um hospital para tentar evitar um aborto legal, como aconteceu no Brasil na semana passada".
Uruguai: redução de danos antes do aborto legal
Uma mulher vítima de um estupro no Uruguai é encaminhada a uma equipe especializada em sexualidade e saúde reprodutiva, capacitada para realizar abortos legais na rede pública, e presente em todos os Estados do país.
"O Espírito Santo tem mais gente do que o Uruguai inteiro! Em um país com as dimensões do Brasil, é terrível fazer com que uma menina tenha que se deslocar 1.500 km para ter acesso a algo previsto em lei", diz a cientista social Juliana Wahl, que em sua pesquisa de mestrado na Universidade de São Paulo investiga a legalização do aborto no país vizinho.
Ela lembra que, antes de 2012, quando o procedimento passou a ser legal até a 12ª semana de gestação, o Uruguai adotou uma política de redução de danos, com medidas para evitar que as mulheres morressem em decorrência de um aborto inseguro. Assim, elas eram atendidas antes e depois do procedimento, mas o serviço não podia fornecer o remédio, que deveria ser conseguido pelas próprias mulheres.
"Essa iniciativa surgiu de uma coletiva chamada iniciativas sanitárias, protagonizada pelo Sindicato Médico do Uruguai e pela Faculdade de Medicina da Udelar [Universidad de la República]. Esse trabalho foi muito importante, porque mostra que os médicos decidiram deixar de ser o problema para fazer parte da solução", diz. "Eles tiveram aval do Ministério da Saúde em 2004 e passaram a assessorar mulheres que queriam interromper uma gravidez indesejada mesmo dentro da ilegalidade. Faziam um ultrassom antes e outro depois, acompanhavam a mulher, mas não podia receitar o misoprostol", explica a pesquisadora.
Para Juliana Wahl, além do contexto político favorável e da laicidade característica da população uruguaia, a política de redução de danos aumentou a informação e a segurança da prática, o que sustentou o debate antes mesmo da legalização. "O aborto já estava normalizado no espaço público e todo o sistema de saúde era integrado e consciente dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres", diz.
Segundo ela, o mesmo poderia acontecer no Brasil. "É mais difícil, por conta do tamanho, mas eu acho que a gente teria condições de fazer uma política de redução de danos aqui. O nosso sistema teria a capacidade de mobilizar um debate e formar profissionais de saúde. Mas não existe vontade política de implementar e conscientizar sobre o aborto no Brasil".
Argentina: o impacto da Marea Verde
Em 2018, os lenços verdes da campanha pela aprovação do projeto de legalização do aborto invadiram as grandes cidades da Argentina. A mobilização levou milhões de pessoas às ruas e conseguiu a discussão em plenário no Congresso Nacional. O texto acabou barrado no Senado, mas o movimento abriu as portas para um debate amplo e profundo sobre o tema não só naquele país como em toda a América Latina.
"É muito interessante ver como o movimento feminista argentino tornou esse um debate de todas e todos, uma demanda de Direitos Humanos, uma dívida da redemocratização com as mulheres", afirma advogada Gabriela Rondon.
Atualmente, na Argentina o aborto não é crime em caso de risco à vida e à saúde da mulher ou se for resultante de estupro.
Para a médica Mariana Romero, as mobilizações para aprovação do projeto fizeram com que mais mulheres e profissionais conhecessem as normas que regulamentam a interrupção nos casos já previstos em lei, além de contribuir para uma despenalização social da prática. "Hoje existem mais equipes de saúde e organizações da sociedade civil dando informação às mulheres sobre aborto".
"A Marea Verde fez com que todos estivessem mais disponíveis para falar do tema, mas também sobre abuso e violência sexual. E, nesse sentido, poder falar, saber que é legal [realizar o procedimento nessa situação], que pode acontecer com meninas e mulheres adultas, muda tudo, tira o aborto da clandestinidade para colocá-lo no plano dos direitos", explica.
O protocolo do Ministério da Saúde argentino sobre aborto em caso de estupro define, por exemplo, um prazo máximo de dez dias entre a solicitação e a realização do procedimento pelo hospital. "A gente trabalha para que esses casos [envolvendo abuso sexual e estupro] sejam resolvidos rapidamente e não cheguem à imprensa. Porque se sair no jornal é porque algo deu errado, já que a última instância deve ser a exposição pública, que gera muitas consequências para a vítima", diz.
Mulheres precisam conhecer e cobrar seus direitos
Em diferentes países da América Latina, o principal caminho para que os Estados cumpram a legislação é fazer com mulheres conheçam os seus direitos e que profissionais de saúde se sintam seguros para realizar o procedimento.
"Precisa haver um esforço massivo e evidente de aumento do acesso à informação, e isso tem que partir também do Estado, que é o responsável por oferecer o serviço. Hoje, para muitas mulheres, pode ser mais fácil ter um contato para um aborto clandestino do que saber quando é seu direito", diz Rondon.
Nesse sentido, casos de grande repercussão, como o da menina de 10 anos do ES, são uma boa oportunidade para sensibilizar sobre histórias reais e violações de direitos que mulheres enfrentam todos os dias.
"Eu tenho a impressão de que os meios brasileiros trataram esse caso de forma correta, desde o sofrimento da garota, das consequências do abuso sexual, do aborto como um direito. Isso é muito positivo", diz Mariana Romero, que reforça a escola como espaço de discussão sobre esses temas. "Ele também mostra a importância da educação sexual na sala de aula, porque, se essa menina tivesse uma professora em quem confiar e um espaço aberto para identificar que isso era uma violência, a gravidez poderia ter sido evitada", diz a médica argentina.
Ação no STF
Sobre a ampliação do direito ao aborto no Brasil, a advogada Gabriela Rondon lembra da ADPF 442, que está em tramitação no STF (Supremo Tribunal Federal) e pede a descriminalização da prática até a 12ª semana de gestação.
"Essa ação está nas mãos dos ministros e pode ser julgada a qualquer momento. O que nós, enquanto sociedade civil, devemos fazer é manifestar que essa é uma pauta urgente, que precisa ser debatida pela Corte, porque a criminalização do aborto é uma violação dos direitos fundamentais, é incompatível com a Constituição e afeta o direito das mulheres", diz a pesquisadora da Anis.
Em agosto de 2018, mês em que as argentinas marchavam nas ruas pela aprovação do projeto de lei no Senado, as brasileiras faziam vigília no Supremo durante as discussões na audiência pública que contou com a participação de representantes pró e contra o texto, de áreas como saúde e direito e de organizações da sociedade civil. "Ali os ministros foram munidos de informação sobre o assunto e ficou evidente que é um tema constitucional e, portanto, função da Corte", diz Rondon.
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