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Solidariedade tem prazo? O que fazer para manter a cultura da filantropia

Um menino carrega doações entregues na favela da Rocinha durante a pandemia no Rio de Janeiro - RICARDO MORAES/REUTERS
Um menino carrega doações entregues na favela da Rocinha durante a pandemia no Rio de Janeiro Imagem: RICARDO MORAES/REUTERS

Bibiana Maia

Colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro

31/08/2020 04h00

Cinco meses após o início do isolamento social, uma desaceleração constante vem atingindo as campanhas de doações para diminuir os impactos da pandemia da Covid-19, no Brasil. O Monitor das Doações da Associação Brasileira dos Captadores de Recursos (ABCR) aponta uma queda mensal nas doações que acumulam mais de R$ 6 bilhões distribuídos para 525 iniciativas acompanhadas pela plataforma. Impulsionado em março com grandes montantes vindo das empresas, as doações agora se mantém principalmente por meio de pessoas físicas doando quantias menores. A dúvida é até quando.

De março a maio, as doações chegaram a R$ 5,5 bilhões, mas três meses depois o montante cresceu apenas cerca de R$ 500 milhões, representando 10% do acumulado. Marcia Woods, presidente da ABCR, explica que o Monitor das Doações nasceu como iniciativa para mapear a filantropia durante a pandemia. "O crescimento do montante está mais devagar por conta dos compromissos iniciais, que foram bastante expressivos. A preocupação nossa, e o que a gente pede e fala para as pessoas, é que a que a pandemia está em pleno curso", conta, destacando que grande parte foi para a área da saúde (77%) e assistência social (18%).

"Há volumes expressivos para infraestrutura, mas muita coisa foi para insumos, equipamento, materiais de proteção e isso de certa forma é descartável e tem período de vida. A gente não pode esquecer que mais da metade do SUS é formado pelos hospitais filantrópicos e, pelo próprio subfinanciamento do SUS, estavam em situação precária, e a gente vê agora o quanto o SUS é importante. A necessidade continua para a rede da saúde e, lógico, para os desafios sociais que vem por conta da pandemia. Com impacto na economia pelo isolamento social, as populações que têm emprego mais frágil, vulnerável, acabaram perdendo a possibilidade de trabalhar, estão precisando de renda e alimento, então fica a mobilização de cesta básica e vouchers", avalia.

Das doações, 62% são em dinheiro, seguido de 31% em produtos, 5% em serviços e 1% de estrutura e 1% de isenção em tarifas. O montante foi destinado em 59% para pessoa jurídica, 22% para a filantropia institucionalizada (institutos e fundações de empresas), 9% para pessoa física, 6% para fundo filantrópico, e 5% para crowdfundings. Este tipo de campanha, a famosa vaquinha online, teve crescimento neste período em relação a ano passado, mostrando o impacto da pandemia. De acordo com dados da plataforma Benfeitoria, de março a julho, no ano passado, foram criadas 379 campanhas, e este ano 2471, arrecadando R$ 22 milhões. Já o Catarse, informou que teve 2584 campanhas em 2019, contra 2931, em 2020, arrecadando cerca de R$ 12 milhões e 16 milhões, respectivamente. Em ambas plataformas, São Paulo e Rio de Janeiro lideram a criação de campanhas.

Diferentes formas de fazer doações

Em terras cariocas, a campanha Covid nas Favelas foi um esforço de apoiar e concentrar diversas iniciativas periféricas e facilitar as doações. Debora Pio, Coordenadora de Mobilizações do Meu Rio, à frente da iniciativa, explica que o resultado veio rápido. Em uma semana de campanha, ainda em março, foram arrecadados R$ 95 mil, através de cerca de 900 doadores. "A gente não tinha pretensão de continuar a campanha por muito tempo porque a gente não tinha previsibilidade de quanto tempo duraria a pandemia, então achamos que este primeiro aporte seria o suficiente. Depois que a gente fez a doação, três semanas depois, os coletivos começaram a falar que havia muitas famílias precisando de mais doação, que agora estavam vivendo uma situação pior", relata.

Houve então mais duas fases de campanha, uma com arrecadação de cerca de R$ 100 mil, e outra com R$ 60 mil. O que tem acontecido agora, segundo ela tem vivenciado, é que as doações estão caindo por diversos motivos. "O argumento é que as pessoas já voltaram a trabalhar e aí elas não precisam mais de doações, e o segundo argumento que acredito também é que houve um desgaste muito grande de quem estava na ponta. Por que é um trabalho hercúleo, quase sempre voluntário, e se torna uma demanda que não acaba, então existe também um desengajamento das pessoas que estavam ali na linha de frente. Eles pegaram essa função para si, mas não era a função original", analisa.

Também com o intuito de facilitar as doações a chegar a quem precisa, o Instituto Socioambiental (ISA) criou um Banco de Iniciativas, onde reúne links para 69 campanhas de diversos povos indígenas. A proposta surgiu quando a pandemia explodiu e o instituto passou a monitorar o impacto da Covid-19 nas terras indígenas e apoiar as iniciativas. Segundo Mariana Zayat Chammas, o perfil é de pessoas físicas, que doam a partir de R$ 20, mas isso não impede arrecadar grandes montantes. A campanha ATIX Mulher tinha meta de R$ 70 mil e passou dos R$ 166 mil, enquanto a Rio Negro, Nós Cuidamos, iniciou com meta de R$ 100 mil e já atingiu os R$ 225 mil. Chammas conta que há três anos vem percebendo uma mudança de cultura diante da doação para povos indígenas. Ela atribui a uma diminuição do preconceito e uma aproximação da cultura por meio de um trabalho envolvendo narrativa que mostra a importância destes povos para manter as florestas em pé.

"Todo mundo que doa para campanha de Covid é porque sabe que vai virar um teste, ou atendimento médico para tratar comunidades isoladas, ou cesta básica, produtos de higiene para que as populações não circulem. Quando se fala deste exemplo, o poder transformador é muito óbvio. É a aplicação concreta do dinheiro", conta ao explicar um pouco o efeito da narrativa: "Para a gente manter esse pique, precisamos contar as histórias de toda a transformação e de como é poderosa e um motor que vai causar mudanças".

O Monitor das Doações faz um mapeamento daquilo que é noticiado ou de campanhas online, mas existem muitas iniciativas que não chegam ao mundo virtual. Neste sentido, a presidente da ABCR entende que existe um potencial ainda maior de filantropia entre os brasileiros. "Se vê uma movimentação comunitária muito expressiva, mas isso a gente não consegue capturar, esse é o nosso grande desafio, de capturar a generosidade que acontece a nível de bairro, que é essa rede de proteção social invisível que a gente tem e faz a grande diferença no Brasil. Para cada doação no monitor, há oito que a gente não consegue capturar".

Exemplo desse tipo de generosidade é o biólogo Rodrigo Carneiro, que organiza a campanha Alimento de Axé no seu terreiro, Ilê Omi Orun, em Sepetiba, zona oeste do Rio de Janeiro, em parceria com o Instituto Onikoja. Ele recebe doações do Banco de Alimentos do CEASA-RJ, monta cestas básicas com alimentos perecíveis e não-perecíveis e redistribui para outros 20 terreiros que entregam mensalmente a 100 famílias cadastradas. A pandemia fez com que o trabalho se organizasse desta forma para facilitar a chegar a quem mais precisa:

"Serviu para a gente conhecer outros pares. Fazer uma ação dessas sozinho é muito difícil. Manter a periodicidade, a ajuda para as pessoas, é complicado. Nós criamos uma rede. Um integrante ajuda o outro. No Onikoja, eles recebiam muitas cestas, mas distribuir é complicado. Até para ajudar tem que se organizar bem. Nossa principal preocupação é que não podemos fazer uma coisa momentânea, por isso estamos criando cursos preparatórios e buscamos outros parceiros para colaborar nesse processo".

Diretrizes para fomentar a cultura de doação

Desde 2013, o Movimento Por Uma Cultura de Doação promove no Brasil o Dia de Doar. A iniciativa acontece dia 1 de dezembro e surgiu nos Estados Unidos um ano antes de chegar aqui. A data ocorre formalmente em 55 países e tem ações realizadas em 190 nações. A ação impulsionou ainda a criação do Fundo BIS em 2017, para apoiar financeiramente a implementação e o desenvolvimento de soluções que ajudem a criar um ambiente favorável à cultura e à prática da doação no país. O Grupo de Institutos Fundações e Empresas (GIFE) é o responsável pela realização e gestão do Fundo.

Este mês, o Movimento Por Uma Cultura de Doação, do qual a ABCR faz parte, lançou ainda a plataforma doar.org, com o intuito de fomentar a filantropia no Brasil. Nela, está disponível um documento com diretrizes de 2020 a 2025, que incluem cinco grandes pilares para avançar com a discussão: fortalecer o sistema da cultura de doação, educar para a cultura de doação, promover narrativas engajadoras, criar um ambiente favorável à doação e fortalecer as organizações da sociedade civil.

Woods explica que a doação não é espontânea, depende deste encadeamento de fatos para que aconteça e ainda critica o estigma daqueles que divulgam sua filantropia: "Há uma necessidade de falar sobre isso, porque simplesmente você está ajudando o país, a causa que está apoiando. Então, se é uma doação de segurança alimentar, de cesta básica, é muito importante falar disso, porque está falando de um problema social e que toda a sociedade tem que dar conta. Ninguém é uma ilha. A interdependência existe e não dá para ser melhor sozinho", finaliza.