Como mulher indígena que vendia chips de celular virou modelo da "Vogue"
Chip, chip. Olha o chip! É R$ 10.
Até o ano passado Emilly Nunes repetia essa frase das 8h da manhã às 7h da noite nas ruas de Belém. Ela vestia um uniforme azul e amarelo, nas mesmas cores da operadora de telefonia, mas sonhava mesmo era com o guarda-roupa das modelos nas capas de revista e catálogos de moda. "Admirava Gisele, Laís Ribeiro...", lembra a jovem de 21 anos.
O desejo, distante para muitas jovens que compartilham o sonho de brilhar nas passarelas, era um pouco mais difícil para a descendente de indígenas que viveu entre a capital do Pará e os rios que cortam a Ilha de Marajó, onde ainda moram seus avós. A favor dela, tinha o incentivo da mãe, que na juventude competiu como Miss Pará, e que a encorajava a reivindicar que sua beleza fosse tão admirada quanto a da gaúcha Gisele Bündchen.
Enquanto isso não acontecia, Emilly continuava na missão de vender oito chips por dia para bater sua meta diária de R$ 80 reais vendidos.
Como se se preparasse psicologicamente para o que viria a seguir, a jovem foi, aos poucos, ficando menos tímida, mais sagaz. Antes, ela conta, travava até ao perguntar o nome de uma rua para um estranho. Com o tempo, dominou a técnica para vender até 10 unidades diariamente com a mãe, que também é vendedora de chips. As duas trabalhavam na frente do mesmo mercado onde Emilly já chegou a trabalhar como caixa.
Como vendedora de chips, recebia um salário mínimo, uma comissão e uma espécie de previsão dos passantes. "Você parece até uma modelo", diziam. E ela ria.
No final do ano passado, Emilly realizou o sonho. Um olheiro a encontrou no Instagram, enviou mensagens, foi conhecê-la pessoalmente e a convidou para trabalhar como modelo. Ela ainda vendia chips. Mas em fevereiro, ela já se preparava para mudar para São Paulo. Em junho, poucos meses após deixar a vida em Belém, estrelou a capa da revista "Vogue". Em setembro, repetiu o feito.
"O projeto agora é levar o nome do meu povo o mais longe possível. Não só no Brasil, como no mundo", diz para Ecoa.
Mudança na moda
Nos últimos anos, a moda viu-se obrigada - seja por movimentos raciais ou pela publicidade — a reconhecer a beleza de pessoas não brancas. E, claro, a evitar arquétipos racistas do passado.
Em 2018, a mexicana de origem indígena Yalitza Aparício de 26 anos, protagonista do filme "Roma", estrelou a capa da edição mexicana de "Vogue". Emilly reconhece que era difícil encontrar alguém parecido com ela na infância.
A modelo é descendente dos Aruans, povo indígena que habitou a Ilha de Marajó e resistiu por três séculos à escravização, mas que perdeu a identidade originária por sucessivas ocupações do território e da cristianização. Ficaram, porém, os costumes e o contato com o meio ambiente.
Herança indígena
Na infância, Emilly passava dias na casa da avó paterna Cristina Barbosa, hoje com 87 anos, que por ironia do destino mora em um trecho afastado onde não pega celular no município de Salvaterra, em Marajó. A família fez uma vaquinha para instalar uma antena de satélite e mantê-la em contato com os parentes.
"Minha avó sempre me disse: a gente tem que cuidar da Amazônia, porque ela é o nosso bem maior. Ela é uma protetora", relembra a neta. A avó ganhou uma cópia da revista com Emilly de presente. Vó Cristina já fala e escuta pouco pela muita idade, mas pelo telefone manifesta saudades da neta no sudeste.
Do outro lado do rio Paracauari vivem os avós maternos, mais espeficamente no município de Soure. O avô, Ezequiel, mesmo com 78 anos ainda trabalha como calafate. "Você sabe o que é um calafate?", pergunta Emilly. A profissão é uma espécie de operário naval. "Ele passa o dia fechando os buraquinhos das embarcações", explica.
Os avós transmitem a cultura de origem pré-histórica, de quando os Aruans ainda ocupavam a Ilha e os brancos não tinham apropriado a terra e os hábitos ancestrais.
O encontro entre povos tão distintos, porém, gerou dezenas de filosofias e, especialmente, um cardápio enorme de sabores. Como o preparo da farinha de mandioca, que Emilly não encontra igual em São Paulo, do bacuri comido direto do pé, do ato de moer a maniva, bater o açaí, pescar no rio e pegar caranguejo. "É muito triste o que a gente está assistindo no país. Tudo isso é dos índios, nós só pegamos emprestados", conclui.
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