Brigadistas viajam 200 km e botam 'fogo contra fogo' para salvar Pantanal
A funcionária pública Lourdes Pereira, 51, tinha um tamanduá quase de estimação. Ele perambulava de lá para cá no município de Ladário (MS), revirando o solo em busca de formigas, escondendo-se na beirada de estradas. O bicho não tinha nome, mas era quase mascote, um "protetor" da casa onde a proprietária diz ter encontrado um verdadeiro "paraíso" há 18 anos, quando deixou de Aquidauana (MS) e se mudou com o marido para o Pantanal.
Em julho, após meses de estiagem, Lourdes recebeu um alerta de emergência: era preciso vestir seu uniforme para combater chamas que avançavam contra o bioma pantanense.
Lourdes lidera um esquadrão de oito brigadistas voluntários para atuar contra incêndios há três anos. Para assumir o cargo, passou por treinos oferecidos por ONGs no Brasil e Bolívia. A funcionária pública não está só. Os brigadistas temporários, contratados pelo governo federal, e voluntários auxiliados por organizações sem fins lucrativos são uma das principais defesas contra as queimadas na região do Pantanal. Integram um reforço para bombeiros e analistas ambientais.
Os voluntários são formados por ONGs da região em parcerias com Ibama e ICMBio. Mesmo pertencentes ao estado brasileiro, órgãos ambientais precisam da união entre moradores e terceiro setor para ajudar na alimentação, equipamentos e na formação de equipes treinadas contra as chamas. Segundo os brigadistas, o desafio em 2020 nunca foi tão desgastante — física e psicologicamente.
No início de agosto, o Pantanal já havia perdido cerca de 10% de sua vegetação. Um mês depois, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou o maior número de focos de incêndio em mais de 20 anos.
Com meses de estiagem, trechos do Rio Paraguai secaram e regiões, então inundadas pela água, não impediram o avanço do fogo. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, no Pantanal há 263 espécies de peixes, 41 espécies de anfíbios, 113 de répteis, 463 espécies de aves e 132 de mamíferos.
Ao receber o alerta, Lourdes pensou em tudo: nos rios e nos peixes que neles habitam; nos pescadores que precisam das águas; nos agricultores que cuidam da terra e, especialmente, nos animais em fuga.
Ao ir em direção às chamas, tiveram um sinal da escala da destruição. O grupo encontrou uma "labareda enorme", que a líder diz nunca ter visto igual. Eles tentaram apagar as chamas com uma bomba para lançar água e abafadores, enquanto eram protegidos por um uniforme contra o fogo, composto por coturnos e luvas de couro. "Às vezes, até um galho para bater contra o fogo já serve para ajudar. E o que tiver na mão", diz.
Por dias, o grupo de brigadistas voluntários encontrou corpos de tartarugas, cobras, ninhos de ema e um achado especialmente melancólico: o tamanduá. "Fiquei sem chão. O fogo é cruel, ele come tudo", diz Lourdes.
Missão é pesada
Segundo Alexandre Pereira, analista ambiental do Prevfogo, sistema nacional contra queimadas do Ibama, um brigadista pode carregar cerca de 40 kg e atravessar 220 km de mato e rios pelo estado até chegar aos focos de fogo. A caminhada é dificultada pelo calor e o terreno acidentado, lamacento ou mesmo inundado. "A gente costuma dizer que no Pantanal andamos com água na cintura e fogo na cabeça", diz.
Os incêndios são comuns no Pantanal. Além de voluntários cadastrados por ONGs, o governo federal abre um edital anual para contratar brigadistas temporários durante a época de fogo no Pantanal e em outras regiões — neste ano, foram 220 vagas para brigadistas no país.
O brigadista temporário é treinado pelo Ibama ou ICMBio e recebe um salário mínimo (R$ 1.045). As jornadas costumam ser de 12 horas de trabalho, ou mais. Já os voluntários são acionados pelo terceiro setor e treinados e equipados pelo poder público.
Brigadistas nutrem uma forma de solidariedade comum apenas entre quem conhece o poder do fogo de perto. Por esse motivo, Alexandre e sua equipe no Mato Grosso do Sul se entristeceram com a morte do brigadista do ICMBio Welington Fernando, 41, como se fossem da mesma equipe. O analista ambiental teve 80% do corpo queimado em setembro após lutar para salvar animais durante um incêndio em Chapadão do Céu, em Goiás.
No mesmo mês, o zootecnista Luciano da Silva Beijo, 36, teve 100% do corpo queimado e morreu em Serra do Facão, no município de Cáceres, em Mato Grosso. Ele teria tentado controlar as chamas, mas tropeçou ao tentar fugir. Não é claro se ele tinha treinamento.
O analista ambiental Alexandre é responsável por coordenar o treinamento dos brigadistas temporários e voluntários em Mato Grosso do Sul, envia equipes de temporários para as jornadas de combate aos incêndios com segurança no estado.
Segundo o coordenador, é possível que um brigadista leve consigo uma bomba d'água nas costas, mangueiras de até 30 metros e um assoprador para batalhar em meio à fumaça tóxica. Um dos segredos, diz, é arrastar-se no chão brejoso do Pantanal caso comece a sentir tontura com a fumaça. Próximo ao solo há mais oxigênio. Para ele, o fogo é um ser fatal e imprevisível, que merece respeito e medo.
Em países como os Estados Unidos, bombeiros são vistos como heróis, como no trabalho contra os incêndios que consomem a Califórnia estiada. Já os brigadistas brasileiros são vítimas de fake news e campanhas agressivas.
Em novembro do ano passado, três brigadistas voluntários foram presos por três dias pela Polícia Civil do Pará e acusados de atear fogo em uma área de proteção ambiental em Alter do Chão, no Pará. Em agosto deste ano, a Polícia Federal afirmou não ter provas para comprovar o ato. Sem provas, o trio foi acusado de incêndio pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e apoiado por seus seguidores nas redes sociais.
Neste mês, agentes do ICMBio foram alvos de fake news no WhatsApp sob a acusação de serem autores dos incêndios devido a um vídeo em que usam o chamado "pinga fogo".
Segundo Alexandre, a técnica do "fogo contra fogo", ou queimada de expansão, é feita apenas por funcionários especializados e consiste em queimar preventivamente pequenas áreas que seriam combustível para o incêndio se alastrar. Quando alcança estas áreas, prévia e estrategicamente queimadas, o fogo não encontra o que queimar. Logo, é contido. Antes da queimada de expansão, os agentes analisam a direção do vento, o que indica para onde as chamas caminham para usar a técnica em segurança.
Além de incêndios em proporções inéditas, a formação de brigadistas temporários foi ainda mais complicado devido à pandemia do novo coronavírus, afirma Alexandre. Não foram treinadas novas pessoas e candidatos do ano passado foram convocados novamente.
"É um trabalho extremamente árduo e perigoso. Nós dedicamos nossa vida, nos colocamos em risco para fazer o nosso trabalho. Fake news como essas são um não reconhecimento da nossa atividade", diz. "É triste".
Terceiro Setor
Além de repassar investimentos para a compra de equipamentos para os brigadistas temporários, as ONGs do Pantanal fazem um trabalho de conscientização para evitar o fogo. As organizações contam com treinamento junto ao Ibama ou ICMBio para instalar base e brigadistas voluntários capazes de fazerem a primeira contenção.
Segundo André Luiz, do ECOA Pantanal (não relacionado ao UOL Ecoa), os brigadistas auxiliados pelas instituições aprendem a enfrentar o fogo para além do apagar as chamas, ou seja, há a ação preventiva a partir da educação e o controle direto dos incêndios. O trabalho é feito em parceria com o Observatório do Pantanal. "É fundamental que os brigadistas sejam sensibilizadores e educadores contra o incêndio", diz.
Os incêndios no Pantanal são intencionais para a abertura de pasto, de acordo com órgãos de fiscalização ambiental e pela Polícia Federal.
Para o presidente da organização, uma das saídas para o fogo criminoso é a criação de bases permanentes de brigadistas com investimento federal. Mas enquanto a União parece não demonstrar interesse na modalidade, a força entre brigadistas tem um potencial transformador.
"Os brigadistas são os únicos capazes de apagar os incêndios florestais no país", acrescenta o presidente da organização. "São eles que vão apagar o fogo e falar uns para os outros que é preciso cuidar do que é nosso", conclui.
Como ajudar
WWF-Brasil
Criada em 1996, a WWF-Brasil recebe e repassa doações para instituições que atuam na preservação do meio ambiente no país. Há um canal específico para doações, a partir de R$ 35.
Ecoa - Ecologia e Ação
A instituição trabalha diretamente no território do bioma do Pantanal. A ONG existe em 1989 e dá capacitação, sensibilização e preservação do meio ambiente para a população local. Qualquer valor pode ser doado no site da instituição.
SOS Pantanal
Elaborada em 2009, o Instituto Socioambiental da Bacia do Alto Paraguai (SOS Pantanal) promove campanhas, oficinas e sensibilização entre grandes empresas e população para a preservação do bioma. Para doar, é preciso telefonar para o número (67) 3042- 9095 ou enviar e-mail para financeiro@sospantanal.org.br.
Mupan - Mulheres em Ação no Pantanal
Fundada em 20 de agosto de 2000, a Mulheres em Ação no Pantanal (Mupan) tem como objetivo propiciar a participação de mulheres como agentes multiplicadoras no contexto de gênero e meio ambiente. Para doações, escrever para mupan@mupan.org.br.
Instituto Homem Pantaneiro
Fundado em 2002, o Instituto Homem Pantaneiro (IHP) é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que atua na preservação do bioma Pantanal e da cultura local. Dentre as atividades desenvolvidas pelo IHP destaca-se a gestão de áreas protegidas, o desenvolvimento de pesquisas e a promoção de diálogo entre os atores com interesse na área. Para doações, escrever para faleconosco@institutohomempantaneiro.org.br
Instituto Arara Azul
Voltado exclusivamente à preservação da arara azul no Pantanal. Fundada em 2003, tem sede em Campo Grande e é a principal instituição para conservação da espécie no país. No site, é possível comprar camisetas, acessórios ou doar qualquer valor.
Icas - Instituto de Conservação de Animais Silvestres
O Instituto dá auxílio, desenvolve oficinas para moradores e material didático para crianças para estimular a preservação da fauna. O principal programa é voltado para a preservação do tatu-canastra, espécie também presente na região do Pantanal. Qualquer valor pode ser doado.
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