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Famílias processam governo de SP por financiar aquecimento global

Protesto em 2019; famílias criaram um "palanque" das crianças pelo futuro no Masp, na Avenida Paulista, em São Paulo - Reproduçaõ
Protesto em 2019; famílias criaram um "palanque" das crianças pelo futuro no Masp, na Avenida Paulista, em São Paulo Imagem: Reproduçaõ

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

29/09/2020 04h00

O governo de São Paulo é alvo de uma ação de um grupo formado por pais e filhos que acusam o estado de estimular a poluição atmosférica e financiar o aquecimento global. Segundo o grupo, o acesso a um meio ambiente saudável também configura como direito garantido das crianças e adolescentes.

O "Movimento Famílias pelo Clima" pede que o governo dê explicações sobre o programa "IncentivAuto", sancionado pelo governador João Doria (PSBD) em outubro do ano passado para incentivar a indústria automobilística com dinheiro público. O programa foi criado para evitar a debandada de grandes montadoras como a Ford, que encerrou as operações em São Bernardo do Campo em outubro de 2019.

Em 2018, cada um dos 15 milhões dos automóveis de São Paulo lançou 2,5 toneladas de gases que intensificam o efeito estufa - fator diretamente relacionado ao aquecimento global e às mudanças climáticas. De acordo com a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), em 2017, foram 2,7 toneladas de poluentes lançados na atmosfera por veículos motorizados. Os gases também causam doenças respiratórias.

Confecção de cartazes em greve de estudantes em prol do meio ambiente - Mariana Brunini - Mariana Brunini
Confecção de cartazes em greve de estudantes em prol do meio ambiente
Imagem: Mariana Brunini

O grupo considera que o decreto desrespeita pactos estaduais em prol do meio ambiente e o direito constitucional das futuras gerações — ou seja, crianças e adolescentes - a um meio ambiente equilibrado. No futuro, o objetivo é cancelar o programa de incentivo aos automóveis.

O movimento brasileiro, que mistura crianças e a pauta ambiental, não é o único a travar uma batalha por medidas mais rígidas contra o aquecimento global.

Efeito Greta

Pelo mundo, fundações, grupos ambientais ou em prol da criança defendem o combate ao aquecimento global como um direito das crianças e adolescentes. A ideia é sensibilizar os adultos.

A ativista Greta Thunberg é uma das líderes da causa e foi eleita personalidade do ano pela revista "Time" com apenas 16 anos. Chamada de "pirralha" pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), Greta milita pelo meio ambiente desde os oito anos. Em 2019, fez um discurso histórico e duro contra governantes na Nações Unidas:

"Estamos em um processo de extinção em massa e tudo que vocês sabem falar é sobre dinheiro e um conto de fadas eterno sobre crescimento econômico. Como ousam!"

A sueca propagou a Fridays for Future, campanha internacional para estimular que os jovens troquem as aulas de sexta-feira por manifestações contra o aquecimento global, uma espécie de greve estudantil.

Protesto de Famílias em pról do meio-ambiente inspirada em Greta Thumberg - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Protesto de Famílias em pról do meio-ambiente inspirada em Greta Thumberg
Imagem: Arquivo pessoal

No Brasil, o Movimento Famílias pelo Clima, responsável pela ação contra o governo, foi criado no ano passado pela cineasta Clara Ramos, 41, e conta com pais e crianças organizados em prol do meio ambiente no país. A iniciativa defende o direito a melhores condições climáticas para a faixa etária, promover ações educacionais em escolas, greves pelo clima e participação de crianças e adolescentes em políticas ambientais do governo.

A fundadora Clara viveu uma infância em que o assunto climático não vinha muito à tona, mas como adulta estava angustiada com as mudanças em curso. Após conhecer o legado de Greta, puxou papo com as filhas de 9 e 11 anos sobre o tema.

Para sua surpresa, elas já dominavam o tema. A mais nova tinha assistido a um documentário sobre o futuro da Terra na Netflix. A mãe lembra que a filha ficou emocionada e preocupada com o que viu.

"As geleiras, o calor, os incêndios, o gado. Tudo está conectado em um só problema! A gente não precisa melhorar só um desses problemas, mas O problema!", diz Irene, de 9 anos, em uma retórica na qual domina termos como "bioma" para tratar sobre os incêndios na Amazônia e Cerrado. "Se ninguém ajudar um ao outro, a gente não vai ter futuro".

Na última sexta (25), Irene participou de um ato online com outros 27 movimentos e coletivos da sociedade brasileira que usaram a hashtag #NossaCasaEstáEmChamas.

"As crianças têm uma prontidão infantil que a gente, mais velho, tem dificuldade para entender", diz a mãe de Irene.

Para ajudar as filhas a não pirar com a possível extinção da humanidade, Clara dá conselhos propositivos. Diz a elas que é possível mudar esse destino se cada um fizer sua parte, preservar o meio ambiente, reduzir o lixo lançado na natureza e principalmente reivindicar medidas concretas dos governantes.

Cancelamento das ações & incentivo

"Os governos não estão respondendo à urgência climática com a velocidade necessária para as futuras gerações", explica Flavio Siqueira Junior, advogado que protocolou a ação contra o governo de São Paulo.

Segundo ele, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) obriga o estado a dar prioridade e garantir o direito ao bem-estar de crianças e adolescentes. Na ação, o advogado também se baseia no artigo 225 da Constituição Federal, que garante direito universal ao meio ambiente "ecologicamente equilibrado" para as atuais e futuras gerações.

O primeiro objetivo da ação é pedir informações sobre o programa de incentivo às montadoras. Posteriormente, tentar a anulação da política. O argumento é que, além de incentivar a emissão de gases do efeito estufa, não foram considerados os impactos ambientais e sociais contra a atual e as futuras gerações. Também não se sabe, segundo a ação, quem são os beneficiários dos incentivos bilionários.

O programa bilionário

O programa "IncentivAuto" garante investimento público para montadoras com projetos para novos produtos, ampliação de plantas de fábrica e criação mínima de 400 postos de trabalho. Cada projeto deve custar, no mínimo, R$ 1 bilhão para ser aprovado e financiado.

Além disso, as montadoras podem receber até 25% de desconto no pagamento do ICMS, um dos impostos que paga as contas de universidades estaduais como a USP e Unesp. A única contrapartida é manter as operações no estado de São Paulo. No texto, não há compromissos ambientais.

Em janeiro, o governo afirmou que a indústria automotiva foi a que mais investiu no estado paulista em 2019, com aportes do governo que ultrapassaram R$ 13 bilhões, ou 44% do investimento feito em novos projetos anunciados pelas montadoras. Uma das beneficiárias, de acordo com comunicado feito à época, foi a General Motors.

Em nota, o governo estadual paulista afirma que ainda não foi acionada pela ação e desconhece seu conteúdo, mas que vai prestar informações à Justiça sobre o programa. Segundo o comunicado, o último balanço da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente divulgado em setembro indica menor emissão per capta de C02 da história, com emissão de 1,6 toneladas, sem especificar o período da coleta dos dados. Também acrescenta que entre 2009 e 2019 teve a maior produção e consumo de etanol hidratado e que os números são "resultados de políticas públicas de sustentabilidade".

"Nossa ação pode abrir precedentes"

O "Movimento Famílias pelo Clima" defende que o incentivo à produção de carros vai na contramão de políticas de redução de gases do efeito estufa em outras regiões, como a Europa. Em 2014, o Parlamento Europeu aprovou um regulamento linha dura para reduzir em 25% as emissões de dióxido de carbono (CO2) lançadas por automóveis a partir de 2020.

Na ação movida contra o governo paulista, o investimento nas montadoras fere um pacto semelhante, a chamada Política Estadual de Mudanças Climáticas, regulamentado há dez anos no estado. Além disso, desconsidera o impacto ambiental sobre as atuais e futuras gerações de brasileiros.

Segundo o advogado Flávio, a argumentação é baseada em uma linha de pensamento do direito chamada de "intergeracional". Ou seja, o estado é obrigado a zelar por quem está vivo e quem ainda não nasceu. No Brasil, a linha de pensamento está prevista na Constituição Federal. "Nossa ação pode abrir precedentes para que leis que já protegem e priorizam a criança hoje também garantam o futuro das crianças de amanhã", diz.

A preocupação está presente na vida e nas ações de Cora, de apenas 11 anos, de São Paulo. Ela mobiliza os amigos da escola e a família. Nos últimos meses, está especialmente empenhada contra os incêndios que assiste pela televisão no Pantanal e Amazônia. Seu desejo é que lutemos para ter tempo de evitar o pior, principalmente entre os mais pobres.

"Mesmo que daqui a alguns anos eu cresça, e tals, e consiga sobreviver, futuras gerações e muitos seres vivos, plantas, animais e pessoas podem não conseguir sobreviver. É pelo futuro que me preocupo e vou em protestos para mudar", conclui.