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Em parceria com motoboys, feira literária espalha poesias pela cidade de SP

Motoboy participa da intervenção artística Poesia Delivery Imagem: Desenrola

Ronaldo Matos e Thais Siqueira

Colaboração para Ecoa, do Desenrola e Não Me Enrola

04/10/2020 04h00

A poesia que antes da pandemia ecoava no Sarau do Binho e em tantos outros encontros literários das periferias de São Paulo, agora se tornou parte da paisagem urbana de São Paulo. No farol, calçada, estacionamento, portão de casa, dentro do elevador e por onde quer que motoboys passem pela cidade.

A partir da criação da intervenção artística 'Poesia Delivery', as produtoras culturais Diane Padial e Suzi Soares, organizadoras da Feira literária da Zona Sul, conseguiram espalhar pela cidade poemas de autores periféricos, instigando a reflexões em pessoas que não necessariamente têm a cultura de ler livros e frequentar saraus.

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"A ideia inicial era ter um drone carregando poesias", conta Padial, relembrando que a proposta da intervenção foi elaborada por Dora Nascimento, uma das produtoras culturais da Feira Literária da Zona Sul que morreu no início de setembro deste ano, dias antes do evento acontecer.

"Ao pensar na poesia percorrendo ruas, me veio a ideia de colocar na bolsa do entregador que é quem mais está circulando pelas ruas hoje. Pensamos então em poemas curtos e que transmitissem uma mensagem aos transeuntes", explica Diane, citando o processo de concepção da intervenção cultural.

A curadoria dos poemas e poetas foi realizada por Tatiana Minchoni, uma das produtoras da Feira Literária da Zona Sul. Ao todo foram selecionados cinco artistas, entre eles estão os poetas Serginho, Augusto Cerqueira, Uberê Guele, Binho e Vitor Rodrigues, autores que possuem uma forte ligação não só com o movimento dos Saraus, mas também com o universo da democratização do livro, leitura e da arte periférica.

A feira literária teve 100% da sua programação destinada ao ambiente online, com realização de conversas literárias, encontros com autores, shows musicais e ações de arte educação em escolas públicas da zona sul de São Paulo, por meio de lives no Facebook e Youtube.

Neste contexto, a intervenção 'Poesia Delivery' se tornou um jeito ousado e criativo de dialogar com as pessoas que estão nas ruas de São Paulo e que não pararam de trabalhar, como é o caso dos motoboys.

Um dos parceiros da ação é o entregador Lucas Abreu, morador do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Ele trabalha em um restaurante durante o dia e à noite continua a jornada dupla de trabalho em uma pizzaria. O motoboy relata que a poesia estampada em sua caixa de entregas chamou a atenção dos seus colegas de trabalho.

"Quando apareci com a bag na pizzaria eles ficaram olhando, perguntaram por que eu estava usando e falei que estava participando de um projeto organizado pela Felizs. Alguns ficaram perguntando para os outros sobre sonhos em uma fila de lotérica, e ficou aquele debate entre eles", descreve Abreu.

Moto e bag do entregador Lucas Abreu, que participou da intervenção artística Poesia Delivery Imagem: Desenrola

A poesia citada pelo entregador é "Mega Cena: quantos sonhos cabem numa fila da lotérica", de autoria do artista Uberê Guelé, morador do Campo Limpo. "Quando eu vi a foto da poesia na bag do motoboy eu dei risada, achei a ideia muito boa, muito criativa. Pensei: 'agora os motoboys são como as abelhas da cidade, saem polinizando por todo lugar e que bom que eles estão espalhando poesia", diz o poeta.

Segundo o artista, um dos primeiros contatos que ele teve com o movimento cultural das periferias foi com o Sarau do Binho, coletivo literário que participa do processo de organização da Felizs.

"Me considero artista desde criança, sempre gostei de desenhar, mas um dos primeiros contatos que tive com os movimentos culturais foi passar em frente ao Bar do Binho em meados de 2009, e vi aquele monte de gente lá dentro e na calçada, eu com 16 anos mais ou menos. Assisti um sarau pela primeira vez e fiquei encantado", relembra Uberê.

11 anos depois do encontro com o Sarau do Binho, ele faz parte de uma iniciativa que difunde a importância do livro e da leitura nas periferias da cidade, em um momento no qual o governo Bolsonaro propõe taxar ainda mais os livros, impactando diretamente as pequenas editoras e o leitor, principalmente aqueles que moram nos territórios periféricos.

"Não acho que se deva cobrar a população. Deve-se cobrar o Estado, que não permite a qualidade de vida necessária pra que as pessoas possam ter seus momentos de cultura e lazer", aponta Uberê, fazendo uma descrição minuciosa da jornada do morador da quebrada.

"O trabalhador e a trabalhadora que estudou em uma escola sucateada, sai às cinco da manhã, pega duas horas de ônibus lotado na ida e volta do trabalho, chega a casa às 19h, cheio de conta pra pagar, filho pra cuidar e alimentar, e se ainda tiver tempo e disposição pra sentar a bunda na cadeira e ler, é louco", descreve.

Mapa dos bairros por onde os motoboys circularam

Um desses moradores descrito pelo artista poderia ser o motoboy Vitor Souza, que também mora no Campo Limpo, na zona sul da cidade e é leitor de Pablo Neruda. Ao participar da intervenção artística realizada pela Feira Literária da Zona Sul, ele afirma que vivenciou "uma nova experiência de espalhar um pouco de amor e conhecimento". O entregador circulou em bairros das periferias e da região central de São Paulo.

Admirador de um bom livro, Souza enfatiza que é a favor da literatura de todos os gêneros e que acha importante o acesso à leitura para todos. Questionado sobre a possibilidade de a intervenção estimular nas pessoas o interesse pelo livro ou mesmo pela poesia, o entregador ressalta: "traz novos horizontes e novos significados, traz reflexão para o próximo".

A cultura e o dilema da internet na quebrada

"Não tínhamos outra opção, foi realizado o possível para alongar a feira, atividades diárias, mas o que mais nos inspirou foi a nossa fome de fazer, a equipe é pequena, mas possui muita gana de fazer acontecer. Temos a tarefa de nos reinventar para realizar, aí está o resultado", afirma Padial, idealizadora e produtora cultural da Felizs.

A intervenção Poesia Delivery, criada por ela, foi uma forma encontrada pela equipe que organiza a feira literária para levar a poesia às ruas, uma forma de não ficar só no online. Com mais de 23 transmissões ao vivo realizadas e uma programação diversa, o evento teve 24 dias de atividades e alcançou pessoas de outros estados e até mesmo de outros países.

Padial destaca que, além da programação dedicada ao público em geral, houve o cuidado tradicional do evento, que é destinar parte da programação para alunos e professores de escolas públicas da zona sul de São Paulo.

"Fizemos tudo que pudemos para atingir o público, foram 14 atividades desenvolvidas em reuniões fechadas com alunos e professores, não estivemos nos espaços como gostaríamos, mas foi o possível neste momento", conta.

Ela enfatiza que muitos alunos não conseguiram participar por problemas com a internet, mas que as atividades ficam gravadas para serem utilizadas em outros momentos. "Os professores podem fazer uso como material pedagógico nas salas de aulas, por outro lado, acessamos públicos do Brasil inteiro e até internacional, que o formato online possibilitou".

Padial não esconde que a pandemia contribuiu para a feira literária deixar de ter o afeto do encontro. "Sentimos muito por ser desta forma, o afeto, a presença, a arte do encontro não podem acontecer, mas nós não desistimos e adaptamos, ousamos e tem sido uma feira linda".

Feiras literárias ocupam territórios periféricos em São Paulo

Desde a primeira edição da Felizs, realizada em 2015, o evento não parou de crescer. Além da quantidade de público que dobrou até a quinta edição, produzida em 2019, a quantidade de atividades e o interesse de editoras e autores independentes para participar da exposição de livros também aumentou com o passar dos anos.

Em 2015, participaram 56 editoras e autores independentes; em 2016, 90. O ápice aconteceu em 2017, com 98 editoras e autores independentes. Desde então, viu queda para 80 e 62, no ano passado.

Os dados da Felizs mostram algo invisível na cena literária das periferias de São Paulo. O Desenrola apurou que uma parcela considerável de selos editoriais e autores independentes que participam da exposição de livros vêm de outras regiões de São Paulo, em sua maioria, eles fazem parte de outros coletivos literários que atuam nas periferias das regiões norte, oeste e leste. Essa informação também aponta um cenário interessante na cena literária das periferias que é a existência de outros festivais literários.

Conheça oitos iniciativas organizadas somente por coletivos, bibliotecas comunitárias e artistas independentes

ZONA SUL

Feira Literária da Zona Sul (Felizs) - evento criado em 2015, idealizado pela produtora cultural Diane Padial e organizado em parceria com produtores e artistas que fazem parte do Sarau do Binho, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo.

Festa Literária do Grajaú (Fligraja) - é organizada por bibliotecas comunitárias, saraus e agentes culturais, em parceria com espaços públicos de educação, como os Centros Educacionais Unificados (CEU) da região do Grajaú, distrito da zona sul de São Paulo.

Feira Literária Feminina (Literamina) - é uma feira literária produzida pela coletiva Sarau das Minas, grupo de mulheres que são artistas e poetas atuantes nas regiões do Grajaú e Parelheiros, extremo sul de São Paulo.

ZONA NORTE

Feira Literária da Norte (Felina) - é organizada pelos coletivos Poetas do Tietê e Cena Norte, em parceria com a Fábrica de Cultura Jaçanã.

Feira Literária da Noroeste (FLINO) - esse festival literário foi criado a partir da união de uma série de coletivos culturais que movimentam a cena cultural de Perus, bairro localizado na zona noroeste de São Paulo.

ZONA LESTE

Festa Literária da Cidade Tiradentes - criada em 2015, o evento é organizado pelo Centro de Formação Cultural da Cidade Tiradentes (CFCCT) em parceria com artistas e coletivos culturais da zona leste, movimentando diversos espaços culturais, por meio da realização de shows, saraus e rodas de conversa.

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