Quem é a candidata a vice nos EUA que pode endossar "efeito Marielle"?
Kamala Harris é vice de Joe Biden, mas pode ser a primeira mulher presidente dos Estados Unidos. O candidato democrata tem 77 anos e, se eleito, terá 78 anos e será o presidente mais velho da história norte-americana. Por esse motivo, analistas são incertos sobre a disposição física de Biden tentar a reeleição ou até mesmo concluir o possível mandato.
A carreira dos vices norte-americanos costuma decolar após quatro anos de poder, como é o caso do próprio Biden, senador veterano que estrelou como vice do então governo de Barack Obama. Mas, afinal, quem é Kamala, o que ela representa e o que ela pode se tornar?
Família de imigrantes
A atual senadora Kamala Devi Harris tem 55 anos e nasceu em Oakland, na Califórnia. Foi eleita para o senado estadunidense em 2016 e cumpre seu primeiro mandato federal.
Formada em direito pela Universidade da Califórnia em Hastings, iniciou a carreira como promotora no condado de Alameda. Antes, estudou na tradicional faculdade negra de Howard, onde se formou em ciência política e economia.
Em 2003, tornou-se promotora chefe em São Francisco e foi a primeira negra eleita a procuradora-geral da Califórnia.
Kamala é filha de pai jamaicano, Donald J. Harris, e de mãe indiana, Shyamala Gopalan. O casal se conheceu na Universidade da Califórnia em Berkeley, quando ainda eram universitários.
Em comum, viveram sob a dominação britânica contra os dois países — e tinham muito sobre o que conversar. Tornaram-se acadêmicos e intelectuais.
Em 1962, ano em que se conheceram, o movimento pelos Direito Civis também agitava os Estados Unidos. Kamala nasceu dois anos depois, em 1964.
Estímulo a mulheres negras na política
A vice vai concorrer em meio à intensificação da violência policial contra negros, com o assassinato de George Floyd e Breonna Taylor, e a reivindicação de movimentos como Black Lives Matter.
Além disso, será preciso endossar a política de antiaquecimento global com pautas propositivas que envolvem o Brasil, como combate aos incêndios na região amazônica. As chamas ajudam a acelerar as mudanças climáticas.
A pauta ambiental é encabeçada por Biden desde o final dos anos 80, que agora promete investimento direto de bilhões de dólares no Brasil ou aplicação de sanções caso o bioma amazônico não seja preservado.
Ao mesmo tempo, Kamala precisa atender indiretamente às reivindicações dos grupos pelos direitos das mulheres que exigiam um lugar no poder executivo americano.
Para a professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano Luciana Brito, Kamala sinaliza justamente a influência das mulheres negras na transformação da política.
A comunidade negra norte-americana não ama Joe Biden porque ele foi vice de Obama. O partido Democrata sabia da capacidade de mobilização do Black Lives Matter e não teve outra alternativa senão suprir a ausência de diversidade com Kamala, uma vice qualificada.
Luciana Brito, professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano
Segundo ela, há uma união histórica e mundial em prol da representatividade negra. São movimentos que mantém diálogo em si, direto ou indireto.
No Brasil, a especialista explica que a presença de mulheres negras na política deve-se à influência de Marielle Franco, vereadora carioca assassinada em março de 2018, no que ela considera um "espetáculo" para amedrontar a participação de mais negras na política. O efeito foi reverso.
Já nos Estados Unidos, as mortes por policiais e a ausência histórica de representação de mulheres negras em cargos de poder pressionou a pauta. (Obama foi o único negro a ser eleito presidente americano, em 2008).
A reivindicação tornou-se especialmente intensa em países onde foram eleitos conservadores à direita, em uma espécie de tentativa de contrapeso em duas narrativas. É o caso dos Estados Unidos, com Trump, e o Brasil, com Jair Bolsonaro (sem partido).
Assim como Obama foi acusado de não ser americano, setores ultraconservadores da sociedade questionam se Kamala é "negra o suficiente". O verbete no Wikipedia sobre a candidata à vice tem sido constantemente editado, um fenômeno chamado pela imprensa americana de "guerra sobre a raça" de Kamala.
A senadora, porém, considera-se uma americana de etnia negra e asiática. O que a conecta tanto a imigrantes como a afroamericanos.
Se Trump perder, o palpite da professora é que a narrativa truculenta do presidente norte-americano dê lugar à "onda histórica" de mais pessoas negras em cargos de poder. O impacto seria sentido no Brasil e no mundo.
"Muitos políticos, que basearam campanhas no método de Trump, ficariam acéfalos com a vitória de Biden e Kamala", diz. "As mulheres negras estão tensionando a balança no cenário político".
O que faz o vice no EUA?
Como no Brasil, o vice-presidente norte-americano não possui atribuições bem definidas, mas diferencia-se ao presidir o Senado. É a diferença entre o modelo brasileiro e estadunidense: caso um projeto da presidência ou de interesse do governo termine em empate no Congresso, o vice tem o voto para desempatar.
Já a construção de relações políticas entre o Executivo, deputados e senadores e o próprio partido são comuns nos dois países. A tática costuma render frutos.
Dos 45 vice-presidentes norte-americanos, 14 tornaram-se presidentes, seja pela morte, assassinato, renúncia ao cargo ou eleitos à presidência após o final do mandato, de acordo com o Senado americano.
A lista de vices vai de nomes como Thomas Jefferson, Richard Nixon, George Bush "pai" e Al Gore; inclui bilionários a vencedores do Prêmio Nobel da Paz, como o então vice Theodore Roosevelt, também eleito à presidência em 1905 e um dos mais conhecidos presidentes americanos.
No Brasil, o vice Hamilton Mourão (PRTB) foi nomeado para gerir o conselho que cuida da preservação da região amazônica, e tenta mediar os ânimos de empresários e do próprio Bolsonaro em relação à Amazônia.
Kamala é uma vice qualificada
Kamala tem traquejo político devido ao cargo como senadora. Em termos ideológicos, também é considerada moderada. Mesmo estreante no Senado, em 2019 anunciou a candidatura à presidência. A campanha não engatou nas pesquisas e ela desistiu da corrida pelo cargo — até ser escolhida a vice.
O posicionamento pragmático e ambicioso não desagrada às alas à esquerda, que pedem por representatividade negra e feminina, e também não "assusta" eleitores que possam mudar o voto Republicano devido ao governo de Trump.
A vice de Biden nunca foi fervorosamente participante do movimento negro norte-americano, nem unânime entre setores que defendem temas como a reforma da polícia.
Biden e Kamala cobraram ações rígidas contra policiais que assassinam negros, como no caso de Breonna Taylor, mas costumam diminuir o tom sobre retirar investimentos públicos das polícias.
A ação do "defund", ou desfinanciar, é uma bandeira das revoltas populares nos EUA desde o assassinato de Floyd. Mas Biden, que mantém diálogo com setores policiais no país, e Kamala, saída do sistema judiciário, são contidos para criticar a polícia.
Em contrapartida, Kamala ganhou destaque nacional em 2018 ao questionar Brett Kavaugh, indicado por Trump para a Suprema Corte enquanto era acusado de assédio sexual por mulheres. O juiz foi aprovado pelo Senado, mas a sabatina dura de Kamala garantiu uma disputa voto a voto pelo cargo.
Críticas a Biden no passado
Kamala também faz contrapeso à biografia polêmica de Biden, que desde os anos 70 está na política norte-americana. Naquela década, o candidato aliou-se a senadores republicanos segregacionistas, como Jesse Helms, para impedir o investimento federal nos chamados "ônibus de integração racial".
O ônibus, que unia estudantes brancos e negros, tentava integrar escolas que, embora proibidas de segregar, não tinham unido alunos de raças diferentes.
Durante os debates entre candidatos do partido democrata em 2019, Kamala relembrou a ação de Biden e falou duramente contra o candidato.
"Havia uma garotinha na Califórnia que participava da segunda turma criada para integrar escolas públicas. Ela era transportada em um desses ônibus todos os dias", disse. "Essa garotinha era eu".
Apesar disso, análises entre eleitores negros consideraram a fala como pouco sincera e estratégica para conquistar novos eleitores. Pesquisas indicaram que Kamala estava em último entre os democratas. Foi escolhida por Biden e abraçou a candidatura.
Para o professor de relações internacionais da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado) Carlos Gustavo Poggio, Obama também não era uma figura carimbada no movimento negro e também cumpria o primeiro mandato de senador, como Kamala, quando venceu as eleições.
Logo depois, ele se reelegeu. Nos dois mandatos, teve Biden como vice. "Curiosamente, o que falamos sobre ela poderia ter sido sobre Obama em 2008", diz o estudioso da eleição de Trump no Estados Unidos.
Em discursos, Kamala já alerta que direitos das mulheres americanas, como o aborto e acesso à saúde com financiamento público, podem ser criminalizados com a vitória dos republicanos. A disputa está começando e também não se sabe como o contágio pelo novo coronavírus vai afetar a candidatura de Trump.
Um debate entre vices
Amanhã (7), Kamala vai debater pela primeira vez com o vice de Trump, Mike Pence. O debate será transmitido ao vivo, embora o professor considere que debates tenham pouca influência sobre o eleitorado, mas há a possibilidade de chamar atenção. "Às vezes, as coisas mudam com um momento memorável", diz. As eleições norte-americanas acontecem no dia 3 de novembro.
Numa entrevista ao jornal norte-americano "The New York Times", a senadora e candidata à vice-presidência afirma que vive uma série de ineditismos.
Eu fui apenas a segunda mulher negra nos Estados Unidos eleita como promotora-chefe de um estado. Fui a primeira mulher negra eleita como promotora em um distrito da Califórnia. Infelizmente, nós [negros] continuamos a ter várias 'primeiras vezes'.
Kamala Harris
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