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Racismo reverso existe? Entenda por que a pergunta é absurda

Luiza Helena Trajano, do Magazine Luiza - Folhapress
Luiza Helena Trajano, do Magazine Luiza Imagem: Folhapress

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

06/10/2020 04h00

A pergunta acima é uma das mais procuradas no Google após o Magazine Luiza anunciar um programa de trainees exclusivo para pessoas negras. A busca também disparou em 100% no Google entre o maio e junho com o assassinato do norte-americano George Floyd por policiais. Uma influenciadora brasileira viralizou ao dizer que o mundo não se chocaria com a morte de um branco, o que seria um preconceito às avessas.

Ontem (5) a Defensoria Pública da União (DPU) abriu uma ação de R$ 10 milhões contra a Magazine Luiza pelo programa de trainee por supostamente não promover a igualdade de oportunidades. O responsável pela ação foi o defensor público Jovino Bento Júnior. No entanto, a DPU divulgou comunicado em que defende ações como a da empresa.

"Como instituição constitucionalmente encarregada de promover o acesso à justiça e a promoção dos direitos humanos de dezenas de milhões de pessoas, a DPU apoia e incentiva medidas do poder público e da iniciativa privada que proporcionem redução de carências e de vulnerabilidade."

Nos casos citados, as perguntas permaneceram. Existe o tal do "racismo reverso"? De onde vem essa ideia?

Ecoa ouviu estudiosos do tema para tirar as principais dúvidas sobre o assunto.

Existe racismo reverso?

Não. O racismo demarca que uma parte da população sofreu com uma exploração oficial da sociedade, com exploração do trabalho, segregação financeira, de moradia e perseguição cultural sob a justificativa da raça. É estrutural.

A ideia de "raça" foi criada para tentar justificar o domínio que já era imposto a outras populações de forma violenta. Os efeitos do racismo no Brasil não foram reparados logo após o fim da escravidão, e os efeitos são sentidos pela população negra e também indígena.

O Brasil foi a última nação independente nas Américas a abolir a escravização de negros, em 1888. Entre os séculos 19 e 20, governadores brasileiros encomendavam abertamente a "importação" de imigrantes europeus com a promessa de trabalho e casa, reparação que jamais aconteceu para centenas de milhares de escravizados após a abolição. A importação era uma tentativa de embranquecer a população para criar uma sociedade que viam como atrativa economicamente e em moldes europeus.

As consequências são sentidas até hoje: negros são a maioria da população brasileira, mas estão entre os 75% mais pobres, são 75% vítimas de homicídio e os mais mortos por agentes do estado (polícia), são minoria na liderança de empresas, têm crédito negado sem explicação, são vítimas da falta de saneamento, estão entre os mais desempregados atualmente e principais vítimas de intolerância religiosa.

Segundo a historiadora e professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano Luciana Brito, seria preciso que a população branca tivesse sido submetida ao mesmo período de privações e condições para defender a existência de um suposto "racismo reverso".

"Não teve africano que foi lá Finlândia para importar brancos europeus, colocá-los para trabalhar à força nas plantations e oferecer as mesmas condições vexatórias", pontua. "O argumento do racismo reverso é em parte desinformação, parte desonestidade intelectual e política".

Qual é a origem do termo racismo reverso?

A origem de "racismo reverso" é difícil de ser detectada. Uma das hipóteses do pesquisador do núcleo de linguagem e sociedades da UnB André Ricardo N. Martins é de que seja uma tradução ruim.

Segundo ele, há o termo em inglês "aversive racism" (ou "racismo aversivo", que também pode ser traduzido como "avesso"), cunhado pelo ensaísta Joel Kovel na década de 1970 para explicar como brancos rejeitavam a ideia do racismo na teoria, mas eram racistas na prática.

Mesmo elaborado para análise da sociedade norte-americana, o "racismo aversivo" é fácil de reconhecer pelo brasileiro: a pessoa diz que não é racista e defende que todos sejamos iguais, mas na realidade mantêm distância e até contrária a ações afirmativas como a do "Magazine Luiza".

Tem diferença entre racismo e discriminação?

O próprio termo "racismo reverso" seria uma contradição, segundo o pesquisador. Para ele, as duas palavras unidas indicam de que há um "racismo certo" e esperado e um "racismo errado". "Quando alguém se diz vítima de 'racismo reverso' é uma tentativa de elaborar um termo para se vitimizar, se fortalecer e lutar contra a divisão de espaços e privilégios na sociedade", explica.

André também afirma que há dificuldade para compreender a diferença entre "discriminação" e "racismo". Segundo o pesquisador, pessoas podem discriminar individualmente umas às outras a partir de estereótipos ou unir-se em grupos comuns, como coletivos que isolam a participação de brancos, homens ou mulheres para discutir ideias entre si. Isso pode ser interpretado como "discriminação", não racismo — a não ser que o alvo da discriminação sejam populações que historicamente tenham sofrido os efeitos da exploração violenta.

Para André, as ações afirmativas discriminam um grupo para promover uma reparação coletiva e alimentar a criação de uma sociedade justa para todos. Ações como cotas nas universidades foram responsáveis, por exemplo, por aumentar em 75% o número de negros no ensino superior entre 2014 e 2018.

E, na lei, quem é vítima de racismo?

O crime de racismo existe desde 1989 no Brasil e pune, entre outras coisas, quem impede acesso a locais, recusa atendimento, nega empregos ou oferece salários menores com base na cor, etnia ou raça. Sim, o texto não explica qual a cor exata da vítima de racismo no Brasil.

Por esse motivo, o Ministério Público de Goiás denunciou um homem negro que publicou mensagens contra brancos nas redes sociais em 2019. O juiz absolveu o réu em janeiro deste ano do suposto "crime de racismo reverso". Na decisão, o juiz João Moreira Pessoa de Azambuja afirmou que o processo "não fazia sentido".

"Não existe racismo reverso, dentre outras razões, pelo fato de que nunca houve escravidão reversa, nem imposição de valores culturais e religiosos dos povos africanos e indígenas ao homem branco, tampouco o genocídio da população branca, como ocorre até hoje o genocídio do jovem negro brasileiro. O dominado nada pode impor ao dominante"

A interpretação feita por um juiz para uma lei que deixa pontos em aberto gera o chamado "precedente", que pode ser utilizado para analisar eventuais novos casos de "racismo reverso" que cheguem à Justiça.

Os casos em que um negro ou indígena é ofendido devido à sua raça costumam ser enquadrados como crime de injúria. É um crime em que se pode pagar uma fiança para ser liberado da pena de até seis meses de prisão. Caso haja agressão física, pode chegar a um ano de detenção.

Por que a ideia de racismo reverso continua a ser propagada?

A ideia de que políticas de reparação histórica a negros e minorias sociais vão tirar o espaço de pessoas brancas não é nova. Importado de países da Europa e dos Estados Unidos, o "racismo reverso" mantém uma linha semelhante à teoria da conspiração do "genocídio branco".

O termo genocídio foi criado no século 20 pelo jurista polonês Raphael Lemkin para classificar a morte de armênios pelo Império Otomano e de judeus e minorias vulneráveis pela Alemanha nazista.

O "genocídio branco" cresceu em popularidade devido a zoologistas como Madison Grant, autor de um livro de 1916 que defende que pessoas brancas derivariam dos nórdicos e esta seria a principal linhagem de uma suposta cultura superior dos norte-americanos e dos povos que aponta como ocidentais originários. A imigração, então, traria impureza à raça branca e a enfraqueceria.

O "genocídio branco", então, não seria causado pela morte de brancos por povos de outras etnias. Mas pela presença física, simbólica e política nos mesmos espaços de poder dos brancos.

A ideia do ataque contra a raça inspirou leis para barrar imigrantes nos Estados Unidos, deu musculatura a grupos como KKK (Ku Klux Klan) e a publicação de livros como "Os diários de Turner", de 1978.

Na obra, o autor neonazi William Luther Pierce narra uma sociedade distópica em que todos os não-brancos dos Estados Unidos são exterminados — como negros e judeus. Na trama, o estado é controlado por judeus que propõe leis contra crimes de ódio e promovem justiça racial.

O livro inspirou um manifesto chamado "Genocídio Branco" e atentados de atiradores que tentam justificar seus crimes com base na "substituição" dos brancos por outras raças e etnias. É o caso do atirador que matou 51 muçulmanos na Nova Zelândia em 2019.

Cotas são "racismo reverso"?

"A política de inclusão deve levar em consideração os processos históricos", explica a doutora em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP) Lia Vainer Schucman, autora de estudos sobre relações raciais.

"Se você faz um processo seletivo que demanda inglês, por exemplo, vários negros já serão excluídos por não terem tido acesso, devido ao racismo estrutural, o que os impediu de obter essa mesma educação no passado", diz.

A professora pontua que não há a mesma reação em processos seletivos onde só há brancos, embora negros sejam mais da metade da população brasileira. "O racismo não é igual à discriminação. E a discriminação a um branco não faz com que ele morra", diz. "A gente que precisa que exista uma política pautada no processo histórico. Dizer que isso é racismo reverso é uma alucinação", conclui.

O discurso de "racismo reverso" perpetua a ideia de que a população negra poderia se vingar do passado e até mesmo da violência física a que foi submetida.

Em 1973, o estudante branco Allan Bakke processou a Universidade da Califórnia por sentir-se discriminado na disputada contra um candidato negro, cotista, em um curso de medicina. Era a chamada "discriminação reversa", que deixou em polvorosa a universidade. Os movimentos negros uniram-se contra a ideia de "discriminação reversa", mas só a Suprema Corte dos Estados Unidos pôde decidir que as cotas não feriam as leis de igualdade no país. Ainda assim, houve um debate intenso entre os membros da corte.

No Brasil, um discurso semelhante aconteceu quando as universidades adotaram as cotas com base na raça, a partir do início dos anos 2000. O debate sobre "ser contra ou a favor de cotas" tornou-se um tópico comum. Quem era contrário, costumava argumentar que a ação afirmativa promovia uma substituição ou impedia o acesso justo de pessoas brancas à universidade.

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as cotas são constitucionais após julgar o processo de um candidato branco à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). De acordo com o estudante, o sistema não era razoável e trazia um "sentimento gritante de injustiça" após prestar prova vestibular para Administração em 2008, primeiro ano da aplicação do sistema de cotas sociais e raciais na universidade gaúcha. Um argumento semelhante espalhou-se na rede após o processo de seleção do Magazine Luíza.