"Único caminho é pelo estudo", diz filha de diarista pós-doc em Hong Kong
Julia Macedo Rosa, 30 anos, era uma criança típica. Inventava brincadeiras e não gostava de arrumar o quarto. Mas sempre fazia os deveres e estudava para as provas do colégio. Era uma aluna aplicada, que tinha como principal motivação proporcionar uma vida confortável para a mãe, Maria Aparecida Macedo Pinto, 66, diarista. "Sabia que ela iria depender de mim um dia", conta.
A promessa está sendo cumprida. Julia foi a primeira mulher da família a conquistar um diploma universitário. E não parou por aí. Também fez mestrado e doutorado. É cientista, formada na Universidade Federal de Santa Catarina e, atualmente, pós-doutoranda em Bioquímica na The Hong Kong Polytechnic University, uma prestigiada universidade em Hong Kong.
A pesquisadora só conseguiu viajar para a Ásia graças à ajuda de amigos e familiares que apoiaram a sua "vaquinha online", financiamento coletivo feito pela internet. Até agora, ela recebeu 19 mil reais - que foram gastos com a passagem de avião e os primeiros meses no país. A colaboração monetária não foi um caso isolado de solidariedade. Ao longo da sua trajetória, Julia contou com muito apoio para se tornar quem é.
"O estudo é o único caminho"
Julia cresceu em um bairro nobre de Florianópolis (SC), na casa em que a mãe trabalhava. Viveu lá até os 12 anos. Os filhos da patroa estudavam, faziam faculdade e tinham uma vida confortável. Foi então que concluiu: "essa é a receita. O único caminho é por meio dos estudos". Ela estudou com bolsa em uma escola tradicional da cidade e decidiu prestar vestibular para Farmácia.
Assim que a sua mãe se aposentou, foi aprovada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no ano de 2009. Nessa época, as despesas só aumentavam.
Maria Aparecida pagava as prestações de um apartamento financiado pela Caixa Econômica Federal. "As contas sempre foram apertadas, mas estavam mais ainda", resume. Para pagar as dívidas, a mãe se inscreveu em programas sociais. Recebia uma cesta básica e desconto na conta de luz.
Julia almoçava e jantava gratuitamente no restaurante universitário, por conta da sua situação socioeconômica. "Eu não passei fome pois tinha o restaurante no campus", revela. Como estudante, recebia R$ 300 de bolsa de iniciação científica. Ela fez parte da pequena parcela de mulheres negras que recebem bolsas de pesquisa no Brasil. As bolsistas do CNPq que se identificam como negras e pardas representam menos de 30%, de acordo com dados da entidade. A dificuldade financeira é uma das principais motivações para as mulheres negras e pardas abandonarem os cursos de graduação, indica o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Apoio da mãe
Apesar da dedicação e dos anos de estudos, os seus títulos não foram suficientes para conquistar uma vaga em uma empresa. A pesquisadora procurou emprego antes mesmo de terminar o doutorado. O que mais escutou nas entrevistas é que o seu currículo era bom, mas que "só tinha mestrado e doutorado", conta. "Tu só estudou, não trabalhou" foi uma das frases ouvida por Julia, que cogitou mudar de área. "Cheguei a pensar que a carreira acadêmica tinha sido o maior erro da minha vida."
Nessas horas de desespero, lembrava da mãe, que acordava todos os dias às 5h e fazia o café da manhã de Julia. Em algumas madrugadas, preparava um lanchinho enquanto a estudante se preparava para uma prova difícil. Assistia a todas as apresentações da filha na universidade. "Ela sentia a minha preocupação e dedicação. E sempre encontrou um jeito carinhoso para me apoiar e dizer: 'continue, estou aqui'".
Ao contrário de Julia, Maria Aparecida estudou até a terceira série do ensino fundamental. Cresceu com mais cinco irmãos e a mãe viúva na serra catarinense, nas cidades de Lages e São Joaquim. Aos 10 anos, em 1964, foi trabalhar na casa de uma família. "Em troca de trabalho, ganhava roupa e refeição", explica Julia. Desde então, morou nas casas que limpava. E, por conta da sua trajetória, sempre incentivou a filha a estudar. "Minha mãe sempre falava para eu não ter a mesma vida que ela teve. Ser empregada doméstica é um trabalho digno, mas é braçal e cansativo. Difícil não ter sequelas físicas." Maria Aparecida, por exemplo, aposentou-se por invalidez após duas cirurgias no joelho.
Carreira universitária
A cientista ficou fascinada quando descobriu o cérebro humano. Durante a graduação, fez estágios em laboratórios, pesquisou sobre doenças degenerativas e depressão. No doutorado, desenvolveu uma tese relacionando os efeitos benéficos do exercício físico com a depressão. Ela irá aprofundar os seus estudos em Hong Kong. Só que sem se preocupar com investimentos, como ocorria no Brasil. "Não consegui finalizar tudo o que tinha planejado no doutorado. E o principal fator é financeiro, depende do investimento do governo", lamenta.
A cientista passou por um processo seletivo para conquistar a vaga de pós-doutorado em Hong Kong. Entregou currículo detalhado com 10 páginas, um projeto de pesquisa e uma entrevista em inglês. Quando descobriu que, enfim, era uma das selecionadas, começou a juntar dinheiro. Mas, com o dólar alto, não conseguiu pagar nem a passagem de avião. Correu atrás de empréstimo de banco. Como foi bolsista e trabalhou na universidade a vida inteira, não conseguiu o dinheiro. "Para o banco, os pesquisadores não têm histórico de trabalhador", lamenta.
Seus amigos sugeriram abrir uma 'vaquinha online' para custear a viagem da pesquisadora. A campanha deu certo. "Paguei a passagem e sobraram R$ 11 mil reais, o equivalente a 2 mil dólares americanos. Esse dinheiro estou usando para comer". O financiamento coletivo ainda está ativo. A cada 15 dias, Julia transfere dinheiro para a sua conta. "Assim que receber meu primeiro salário em novembro, eu fecho a vaquinha. O meu gasto foi maior do que o planejado. Fiquei hospedada em um hotel por 15 dias por conta da quarentena e paguei táxis", explica.
"Uma mulher negra tem que fazer tudo em dobro"
Quando Julia tinha dois anos, começou a esfregar compulsivamente o sabonete na pele durante o banho. A sua mãe ficou preocupada e perguntou o porquê ela fazia isso. "Eu disse que a amiguinha da creche não queria brincar comigo porque eu era suja". A garota amava a escola e, desde então, não queria ir mais. Esse foi o primeiro caso de racismo que Julia sofreu. Ela não lembra da situação. A sua mãe contou sobre o ocorrido muitos anos depois. Na época, Maria Aparecida foi na escola, conversou com a diretora e lutou para que a filha não fosse discriminada.
Para não sofrer episódios semelhantes, Julia aprendeu que deveria ser uma criança mais bem comportada do que os amigos brancos em ambientes públicos. Desde que começou a pegar ônibus sozinha aos 12 anos, a sua mãe dizia para a filha andar sempre com o uniforme da escola. "Tu não podes agir como os teus colegas e fazer coisas inconsequentes", alertava. Ela não entendia as preocupações de Maria Aparecida. Até entrar em uma loja e perceber que o segurança a acompanhava nos corredores.
Ela conta nos dedos os colegas pretos do colégio particular. Foi na universidade que começou a refletir mais profundamente sobre questões de identidade racial. Participou ativamente do Núcleo de Estudos Negros de Santa Catarina. E, há seis anos, assumiu o cabelo natural, o que evidenciou o racismo. "Às vezes as pessoas simplesmente tocavam no meu cabelo sem me pedir e diziam: 'parece um bombril'."
Em congressos, alguns acham que ela é a "menina do cafezinho" - mesmo quando está ao lado de um cartaz com a apresentação e uma foto sua. Também é frequentemente confundida com a atendente ou a faxineira dos supermercados. "As pessoas não associam isso ao racismo. É um pensamento enraizado. Muita gente acha que nós, mulheres negras, somos funcionárias e sempre ocupamos um cargo inferior."
Situações como estas são exaustivas. "Como mulher a gente tem que se provar. E sendo uma mulher negra, aí é que não pode errar nunca, tem que sempre fazer o dobro." A cientista sabe que é um exemplo, mas pede para evitar comparações: "Não tentem me comparar com os outros. Não é questão de meritocracia. Eu tive uma vida cheia de privilégios. Não sei como teria sido se eu crescesse na periferia. E se eu não tivesse a ajuda psicológica da minha mãe. Eu tive muito apoio para chegar até aqui."
Julia também defende a representatividade. No estágio de docência, a pesquisadora deu aula de bioquímica para a turma do primeiro semestre de fonoaudiologia. No fim da aula, a única aluna negra da turma disse: "Eu não sabia que alguém como eu poderia ser professora." A dúvida da estudante tem fundamento. As mulheres representam 46% das docentes de ensino superior. Mas somente 23% delas são pretas e pardas, aponta o levantamento da Open Box da Ciência.
Julia recorda que só teve apenas um professor negro. Mesmo assim, o comentário da estudante a deixou surpresa. Relembrando a própria história, respondeu: "Tu já fez uma parte muito difícil que é entrar na universidade. Tu tens a possibilidade de ser quem quiser". Assim como Julia.
Como ajudar
Se você quiser contribuir com a pesquisadora, pode doar qualquer quantia no financiamento coletivo. A meta de Julia é atingir R$ 25 mil para poder bancar o início de sua vida como pós-doutoranda em Hong Kong
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