Por que a nova política de educação especial é vista como retrocesso?
"Decreto da exclusão". É assim que tem sido chamada a nova Política Nacional de Educação Especial (PNEE), sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (Decreto 10.502).
A medida, na prática, tira a obrigatoriedade da escola comum em realizar a matrícula de estudantes com deficiência e permite a volta do ensino regular em escolas especializadas, o que é visto por entidades como um retrocesso à educação inclusiva no país, além de violar a Constituição ao segregar alunos.
Para ajudar a explicar o que muda com o decreto e quais são os impactos da política para os estudantes com deficiência, Ecoa ouviu especialistas que trabalham na defesa e melhoria do ensino inclusivo no país.
Especialistas veem a nova política como "excludente e ilegal". Por que?
Um dos principais argumentos contra o novo decreto é de que segregar não é incluir. Outra questão é a violação da própria Constituição Federal, que prevê em seu artigo 206 a educação como princípio a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. Já o artigo 208 estabelece que o atendimento educacional especializado será preferencialmente realizado na escola regular.
"O decreto é absolutamente inconstitucional e contrário a todas as conquistas que estudantes da educação especial, seus familiares e escolas inclusivas conquistaram até hoje. Qualquer forma de exclusão fere o direito à educação. A escola não pode comparar alunos, a escola deve trabalhar e desenvolver os estudantes segundo a capacidade de cada um. O público alvo da educação especial é um público que tem que ter assistência em suas necessidades, e a escola deve buscar um ambiente para todas e todos", afirma Maria Teresa Mantoan, coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença da Unicamp.
De acordo com o último Censo Escolar, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o número de matrículas em classes comuns de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades, chegou a 1,2 milhão em 2018, um aumento de 33,2% em relação a 2014.
O decreto flexibiliza o direito da pessoa com deficiência de frequentar a escola comum. O que isso significa na prática?
Sem uma consulta pública ou embasamento técnico, o decreto distorce o próprio conceito de inclusão, permitindo classes especializadas dentro de escolas inclusivas. Além disso, ao dar a opção para que famílias escolham por matricular os filhos em escolas regulares ou especiais, abre-se um precedente para a negação de matrículas.
"Na prática, o que acontece: a família decide matricular a criança na escola regular. E aí vem um profissional aconselhar que, no caso daquela criança, com aquela deficiência, é melhor ela ser encaminhada para uma escola especial. Com a nova política, essa conduta passa a ser 'aceitável'. Então, esse ponto do decreto é extremamente crítico porque a questão da escolha vira uma falácia. Não é realmente uma escolha quando a escola se recusa a matricular ou quando a escola não está recebendo recurso para incluir alunos com deficiência", aponta Luiza Correa, coordenadora do Instituto Rodrigo Mendes, que atua por uma educação de qualidade para pessoas com deficiência na escola comum.
Tanto na rede pública, quanto na rede privada, a negação da matrícula é um risco gravíssimo que muitas famílias já enfrentam. Uma violação que já vem acontecendo. Outro fator é que estamos falando de um país com dimensões continentais e com grande diferença de acesso à informação, com instituições especializadas com um poder de barganha muito forte.
"Uma instituição especializada pode se negar a oferecer terapias para uma criança ou adolescente que não faz parte do seu corpo de alunos: 'Se ele não estuda aqui, não tem direito'. E a família, obviamente, quer para o filho o acesso às terapias e o acesso ao AEE (Atendimento Educacional Especializado), que acontece no contraturno escolar. Existem mecanismos de pressão que são muito injustos. Precisamos também considerar que muitas famílias, sobre o pretexto de proteger, ainda dialogam com um pensamento capacitista: 'Meu filho não vai dar conta, vai sofrer bullying'. Como se isso não acontecesse em escolas especiais. Essas famílias, novamente, no intuito de proteger os seus filhos, são facilmente levadas pelo discurso de que a qualidade e a capacidade de enfrentamento das escolas especiais seriam melhores, mas na prática elas não são", completa Luiza.
Como fica o investimento público em educação inclusiva com a nova PNEE?
Outro ponto de conflito apontado no decreto é o repasse de recursos públicos para escolas especiais conveniadas, enquanto o dinheiro deveria ser investido na inclusão e na remoção de barreiras no ensino. Segundo Luiza, instituições especializadas, muitas vezes, utilizam um "currículo funcional natural" e não um currículo pedagógico aplicado em sala de aula comum. É como se essas instituições olhassem para os estudantes com deficiência e encontrassem um impedimento. Já em escolas inclusivas, a ideia é que se encontre uma potência, uma capacidade, uma possibilidade para o aluno se desenvolver. E para isso acontecer, é necessário investimento.
"Esse dinheiro deveria ser usado em tecnologia assistivas, que auxiliam e reduzem o impacto do impedimento do estudante quando ele se relaciona com o mundo externo. Deveria ser usado também na formação e preparação de professores, em profissionais de apoio, intérpretes de libras e cuidadores, na remoção de barreiras tanto físicas como de acessibilidade, como construção de rampas e elevadores. Todo esse dinheiro deveria ser investido para aprimorar a inclusão, não segregar".
Qual o ganho da diversidade nas escolas?
Para Rodrigo Hübner Mendes, fundador do Instituto Rodrigo Mendes e colunista de Ecoa, é preocupante a nova política destinar recursos públicos para manutenção de escolas especiais que promovem segregação, já que evidências mostram que esse não é o melhor ambiente para as pessoas com deficiência se desenvolverem.
"É por meio da diversidade, da convivência entre todos, que vamos construir uma sociedade mais humana, plural, que valoriza e respeita as diferenças. Quando o professor atende uma sala de aula heterogênea, ele precisa buscar meios para ensinar os mesmos conteúdos de modos diferentes e garantir que todos aprendam. Isso é muito enriquecedor para a sua prática pedagógica, tal como é enriquecedor para todos os alunos, que têm acesso a diferentes abordagens sobre o mesmo conteúdo".
O decreto foi assinado pelo presidente Jair Bolsonaro no final de setembro e desde então vem sofrendo forte pressão. É possível uma revogação?
Lideranças e organizações que promovem e defendem a educação inclusiva no país buscam agora a revogação do decreto, visto como excludente e ilegal. "Um dos instrumentos para derrubar a nova Política é o Projeto de Decreto Legislativo (PDL). Já foram propostos onze PDL contra esse Decreto na Câmara dos Deputados, já com requerimento pelo regime de urgência, e mais dois no Senado. Caso a urgência seja aprovada pela maioria da Câmara, a questão passa diretamente ao plenário, sem depender de manifestação e votação das comissões, como tem sido a prática durante o estado de emergência da pandemia da Covid-19. Tudo indica que o PDL será votado em breve e depende de ter maioria simples na Câmara, desde que esteja presente no plenário a maioria absoluta dos deputados", diz Mendes.
Para Maria Teresa, não há dúvida de que o decreto será revogado. "A inclusão já é uma ideia potente em nossa sociedade e não pode ser ceifada assim, de uma hora para outra, por uma 'canetada'. Caminhamos pela inclusão não só de pessoas com deficiência, mas de muitas minorias que são prejudicadas pelo fato de serem discriminadas. Na educação, a inclusão escolar tem o papel de provocar e desafiar a educação comum, não podemos mais permitir uma educação como venda de produto de aprendizado, em que as pessoas querem aprender para conseguir alguma coisa. É preciso buscar o ensino para formar cidadãos, e a educação deve ter esse papel de recriar e rever tudo que precisa ser desconstruído e reconstruído na sociedade".
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