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"Muitos brancos acham que ser agradável é ser antirracista", diz Diangelo

Thaís Regina

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

27/10/2020 11h03

Vocês se lembram do episódio Amy Cooper? Em maio, a estadunidense passeava com seu cachorro sem coleira e, quando Christian Cooper a avisou que isso era proibido no parque em que estavam e pediu para que ela colocasse a coleira em seu cão, Amy ameaçou ligar para polícia e dizer que um homem afroamericano estava ameaçando sua vida. Apesar do caso ter sido lembrado somente no final da primeira mesa do encontro Branquitude, racismo e antirracismo, a situação sintetiza muito do que foi conversado: dentro da disputa de discursos raciais, a branquitude tira o racismo de pauta e protege o status quo.

"Quando uma mulher branca começa a chorar por questões raciais, toda a atenção da sala vai para confortá-la", declara Robin Diangelo, professora e autora estadunidense, durante o debate "O branco na luta antirracista: limites e possibilidades", primeira mesa de uma série de encontros promovidos pelo Instituto Ibirapitanga e transmitidos por Ecoa. Robin foi acompanhada por Cida Bento e Thiago Amparo, responsável pela mediação.

"A mulher branca pode estar errada, mas quem causou essas lágrimas vai ser percebido como agressor", conclui. Em seu livro "Não basta não ser racista: sejamos antirracistas" (tradução brasileira de "White Fragility: Why It's So Hard For White People To Talk About Racism") de 2018, Robin dedica um capítulo inteiro para se debruçar sobre as lágrimas das mulheres brancas e como a ideia da fragilidade da mulher branca, em oposição ao estereótipo da mulher negra raivosa, proporciona um poder às brancas, produto de um acordo com o patriarcado. Segundo a autora, o caso Amy Cooper trata-se de um exemplo concreto do poder concedido às lágrimas das mulheres brancas e "como ela [Amy Cooper] usou isso para transformá-lo [Christian Cooper] num criminoso".

Desde o começo da conversa, as convidadas deixaram nítido como falar de branquitude é falar também de disputas discursivas. Cida Bento é professora e doutora em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) e aproveitou o começo da noite para explicar o conceito cunhado em sua tese "Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público". "Dois exemplos do pacto narcísico e seus resultados: a jovem mulher no banco falando que a ampliação da presidência negra poderia representar um nivelamento por baixo e o diretor que disse que as cotas estão destruindo as universidades. O outro lado dessas falas é que se assume que a instituição funciona bem sendo branca, na verdade, ela funciona bem porque ela é branca; esse raciocínio implica que o negro vai romper com a excelência", declara, "O pacto narcísico é a asseguração das presenças brancas contínuas no preferenciamento silencioso e profundamente ideológico de iguais." Cida explica que existe uma análise mais profunda desse discurso que legitima o genocídio negro porque, no limite, defende-se a ideia de que o negro nada traria de bom à instituição em questão — nem à sociedade.

"Porém, os homens que escondem dinheiro nas suas cuecas são brancos", provoca Bento. A branquitude assegura aos brancos a impossível reversão do discurso: quantas vezes ouvimos que os brancos quebram a sociedade, que os brancos nos nivelam por baixo? Os mecanismos da branquitude atuam quando se racializa o outro, mas não o branco. Dessa forma, cria-se a falsa ideia de inocência racial branca, segundo Diangelo. "É como quando pessoas brancas dizem que não entendem nada sobre raça e dão às pessoas negras a 'oportunidade' de ensiná-las — isso é uma forma de colonialismo. Eu vou pegar todo seu conhecimento e não te dar nada em troca, como se não fosse uma responsabilidade branca buscar conhecimento e reverter esse sistema. Os brancos são vistos como o "neutro" sobre racismo, enquanto o negro é aquele que tem conflito de interesse nessa fala, mas os brancos se beneficiam da estrutura racista", provoca.

A solução, segundo Bento, é usar as vozes brancas para desmentir isso. "A contribuição do branco tem que vir de onde ele está porque ele está dentro das instituições. O branco a curto prazo pode parar, retornar ao seu lugar de pacto narcísico, ele tem que ser constantemente pressionado para fora do seu lugar de conforto", diz. Cida acredita que as respostas brancas estão surgindo porque os brancos estão se sentindo encostados na parede por movimentos de mulheres negras: é impossível negar a consciência das pessoas brancas sobre seu poder de raça perante o caso Amy Cooper, por exemplo. Uma vez reconhecidos os privilégios, é preciso que se abra mão deles — a parte mais crítica do processo antirracista. É preciso reconhecer o racismo não enquanto episódios isolados, mas como a estrutura de legado branco. Como as demais instituições, tudo pertence ao legado branco, ainda que apropriado, porque o controle das instituições é de pessoas brancas, situação que se legitima e se perpetua pelo pacto narcísico. Perante isso, Cida é cirúrgica: "Eu me sinto expropriada".

Os agradáveis aliados

Robin não se poupa. "Brancos progressistas causam mais dano emocional diário a pessoas negras do que brancos conservadores", dispara. "Eu sou essa pessoa branca progressista, o exemplo mais clássico: a branca cheia de boas intenções, mas que faz vocês irem para casa cansadíssimos porque fico perguntando 'será que devo abordar esse ponto?' As sutilezas, os assédios, as atitudes mais enlouquecedoras vem dos brancos próximos...eu não tenho menos racismo internalizado porque eu sou progressista ou pobre ou mulher", diz. "No momento em que eu penso que eu sou o foco, apontada como racista, eu vou ser defensiva, não vou interiorizar nenhuma dessas críticas. Pessoas brancas progressistas não têm que se perguntar SE eles fazem parte da estrutura racista, mas COMO", completa Robin.

Para ilustrar o que Diangelo diz, vale lembrar de um conceito que ela mesma cunhou em 2011 e que viria a ser, anos depois, o ponto central de seu livro best-seller: "A fragilidade branca diz respeito a sociologia da dominação e como proteger as posições. É sobre permitir-se estar irritada, magoada, porque 'você não me conhece, não sabe como eu sou diferente, como eu sou racista?', é o que me permite me diferenciar. A fragilidade branca se apoia no discurso de meritocracia, que nega a estrutura de privilégios, e na superioridade internalizada, a qual tornaria o discurso da meritocracia possível", explica.

"Esse discurso não precisa ter lógica, precisa funcionar. A fragilidade branca opera para que o racismo seja excluído da discussão e seja protegido pelo status quo", dispara.

E mesmo sendo um branco progressista, você pode lançar mão da fragilidade branca. Um teste é a cultura da agradabilidade — da qual Diangelo não é nada fã. "Muitos brancos acham que ser agradável é ser antirracista, essa cultura da agradabilidade protege o racismo porque pressupõe-se que o desconforto ou conflito é o problema, não o racismo em si", explica.

Enquanto branca e dedicada a discutir o racismo e criticar a branquitude, Robin rejeita o lugar de branca agradável, que pensa que se tiver amigos negros, não é mais racista, como se deixassem assim de se beneficiar do sistema racista. Segundo a autora, a solução é uma internalização desde a infância da consciência racial, e para ela, que não teve essa oportunidade, a aposta é na construção de relações sinceras e confiáveis com pessoas negras, em que ela permite ser questionada e busca sempre se questionar e melhorar, também.

"O que eu diria para os brancos e brancas brasileiras é que não descartem o que eu disse porque eu não sou brasileira", diz Robin depois do agradecimento, "Eu tenho apresentado meu trabalho pelo mundo inteiro e, em todo lugar que eu vou, as pessoas brancas me chamam de canto para dizer que o racismo é um problema estadunidense, que nesse lugar é diferente, trata-se de uma sociedade multicultural, cuja cultura eu não conheço e assim por diante. Por outro lado, as pessoas negras me chamam de canto para dizer 'Graças a deus você está aqui, nos ajude a lidar com essas pessoas brancas'; as culturas são diferentes, mas as dinâmicas e resultados são os mesmos."

Tem mais!

O encontro "Branquitude, racismo e antirracismo" é promovido pelo Instituto Ibirapitanga, que é uma iniciativa do cineasta Walter Salles e tem sua atuação desde 2017 nos campos de equidade racial e sistemas alimentares. Com transmissões ao vivo pelo Youtube do UOL e por Ecoa, terá mais quatro conversas, até amanhã (28), sobre a pauta racial com objetivo de promover a reflexão sobre a ordem vigente e a possibilidade de desenhar futuros de luta e de pós-racismo.

Hoje, às 16h, a filósofa Sueli Carneiro encontra a cocuradora do evento Lia Vainer Schucman para conversar sobre "Alianças possíveis e impossíveis entre brancos e negros para equidade racial", com mediação da artista textual Ana Paula Lisboa. Às 18h, o professor e autor Deivison Faustino encontra o mestre em sociologia Lourenço Cardoso para falar sobre "O protagonismo negro no desvelar da branquitude", com a mediação da historiadora Luciana Brito.