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"O racismo tem que ser um problema pessoal de todos", diz Jurema Werneck

Jurema Werneck - Divulgação
Jurema Werneck Imagem: Divulgação

Thaís Regina

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

29/10/2020 18h25

"A gente está lutando por vida e liberdade, não há nada que imponha limites a esse tipo de luta. Por ser uma luta por sobrevivência, a sensação de impotência é inviável", dispara Thula Pires. "Você pode não saber qual é o caminho mais estratégico para sua sobrevivência ou se perceber com insuficiências materiais, mas paralisar diante de uma ameaça à sua sobrevivência é instintivamente inviável", reforça a doutora em direito. O último dia do encontro "Branquitude, racismo e antirracismo", promovido pelo Instituto Ibirapitanga e transmitido por Ecoa, trouxe duas mesas fundamentais ao debate racial: "O papel da comunicação no antirracismo" e "O que podem os indivíduos diante da estrutura?", conversa em que Pires esteve com a médica e doutora em comunicação e cultura Jurema Werneck com mediação da jornalista, autora e colunista da Ecoa, Bianca Santana.

Tomando o constrangimento como ponto de partida das relações entre negros e brancos antirracistas, há muito que pode ser feito. Segundo Jurema Werneck, "Cada um luta com o que tem; na escola e também fora dela, nas pesquisas acadêmicas e também nas condutas acadêmicas, tudo pode fazer parte de uma proposta antirracista." Uma coisa é certa: o conforto da branquitude que se manteve até hoje não pode mais continuar. Logo, Thula reformula a questão central do evento: "De tudo que é possível, se o indivíduo está de fato comprometido com a liberdade plena para qualquer indivíduo, quais práticas mais podem transformar esse mundo? Sem local confortável e sem gradação, uma transformação radical."

Mas, que estrutura é essa com a qual se precisa romper? Jurema diz que são processos, culturas, imaginários, instituições, formas de agir e pensar que podem conduzir o destino de si e dos outros; segundo ela, "É uma máquina de moer gente". A médica e doutora em comunicação prossegue com sua metáfora, que cai como uma luva. "Diante esse maquinário tão bem orquestrado, o indivíduo precisa largar a manivela de aniquilamento e destruição chamada racismo; dentro da perspectiva do ativismo: tirar a lente — os enunciados da desgraça dos negros —, ver racismo em tudo, mergulhar nessa lama, nessa dor do privilégio de aniquilamento e superar a partir da luta. A insurgência se realiza rompendo com a regra da morte — e o nome disso é luta, sem esquecer nunca que essa luta tem protagonismo. O racismo tem que ser um problema pessoal, que arrasta outras pessoas criando coletivos, que não aceitam esse contrato. Vai ser bom? Sim. Vai ser ruim? Também", diz.

"Sempre que eu penso que posso estar exagerando, eu olho para o trabalho doméstico e para as prisões: essas são as melhores representações do que nós somos enquanto sociedade e dizem muito sobre o tipo de pacto político que a gente é capaz de produzir, o quanto a nossa democracia é tacanha", desabafa Thula. "A liberdade é frágil. A gente conseguir dormir com a prisão sendo uma realidade sustentada por quem está fora dela, com um índice de encarceramento que cresce mais de 700%? Olha, isso é muito indicativo, são contextos que me oferecem leituras muito duras, mas muito concretas sobre o que é o direito e a sociedade brasileira. Com o trabalho doméstico, não tem cortina de fumaça: muita gente foi capaz de exigir do empregador uma postura responsável durante a pandemia do novo coronavírus enquanto reproduzia sobre a trabalhadora doméstica o oposto do que exigia. Toda rejeição de direitos trabalhistas que o Direito dá a essas trabalhadoras é muito revelador."

Para as pessoas negras que querem romper com a lógica colonialista, Jurema também indica o caminho: "Começar a pensar que não somos só feridas e cicatrizes, apesar das feridas serem reais. É preciso se movimentar em direção à humanidade mais completa e complexa; para isso, precisamos construir outros cenários e horizontes: de festa, alegria e luta, de tudo que o negro pode ser e viver." Fatalmente, isso passa por um esforço em revoltar para o povo negro sua história, seus ícones tão apagados por uma visão eurocentrica. A convite de Bianca Santana, Jurema relembra seu trabalho de resgate de Tia Ciata, figura a quem foi atribuída a invenção do samba; a tese de doutorado de Jurema é de 2007 e se chama "O samba segundo as Ialodês: Mulheres negras e a cultura midiática" — e está disponível aqui.

Um novo acesso à realidade
A primeira consideração da professora Liv Sovik em "O papel da comunicação no antirracismo" é que, historicamente, os meios de comunicação são posteriores ao racismo, logo atualmente há um paradoxo: enquanto em sua origem a mídia é um instrumento do racismo, ela pode assumir hoje a faceta antirracista ao potencializar conhecimento de grupos racializados. A doutora em ciências da comunicação relembra que os países colonizadores faziam ainda em 1900 exposições, episódios circenses para expor as riquezas naturais conquistadas, o que incluía os habitantes das colônias e também que a história da fotografia, por exemplo, coincide com o auge das teorias do cientificismo. Assim, o racismo está tanto na constituição do entretenimento como do jornalismo. Esse foi o início da mesa uma troca entre duas autoras, Sovik e Nic Stone, mediada pelo jornalista Tiago Rogero.

"É difícil arrancar o poder das mãos das outras pessoas, então quem está no poder precisa compartilhar, entender que garantir a presença de pessoas negras em cargos relevantes é fundamental", declara a estadunidense Nic Stone. Ela conta um pouco sobre como utilizou o seu lugar de escritora para fazer do seu livro de estreia uma história infanto-juvenil antirracista e sensível — "Cartas para Martin" (2017) rapidamente se tornou um best-seller. "Todas as pessoas têm a mesma gama de emoções, então trouxe elementos visuais, como a colagem de coberturas midiáticas sobre abordagens policiais, para manter a leitura engajada e também porque dar elementos reais e/ou relacionáveis é uma forma para estimular as pessoas a refletirem e, assim, promover mudanças", diz.

Na opinião de Stone, filmes como "Pantera Negra" fazem parte da construção do imaginário possível, não apenas para pessoas negras, e deve ser encarado como um convite enquanto sociedade. "Filmes como esse são essenciais para reverter o dano feito à representação negra", declara. Para além de vislumbrar e se empenhar em um projeto de futuro, a reflexão crítica sobre o contrato racial é para Sovik a única possibilidade de conseguir entender o presente. "Antirracismo não é uma nova ideologia que você se coloca, mas um novo acesso à realidade", diz Liv Sovik. "Caso as pessoas não consigam ou não queiram se desfazer das fortes amarras da colonização do olhar, elas não têm acesso ao mundo que estamos vivendo hoje."

O encontro "Branquitude, racismo e antirracismo" foi promovido pelo Instituto Ibirapitanga, o qual é uma iniciativa do cineasta Walter Salles e tem sua atuação desde 2017 nos campos de equidade racial e sistemas alimentares. O evento trouxe reflexões de convidados que estão comprometidos em suas respectivas carreiras a desafiar as estruturas vigentes, investigar tanto o racismo de intimidade quanto o racismo estrutural e, sem medo, descolonizar-se com o comum de fortalecer a democracia brasileira.