De vítima a suspeito: ativistas se unem para reverter prisões injustas
O educador social Marcelo Dias, 41, nunca esquecerá o dia 9 de junho de 2018. Naquela data, foi preso acusado de tráfico e associação para o tráfico ao chegar à sede da ONG Novos Herdeiros Humanísticos, na zona sul da capital paulista. Após PMs atribuírem a ele a posse de uma sacola repleta de entorpecente e abandonada nas proximidades da organização, Dias passou seis meses detido.
Ao obter a liberdade e ser absolvido, o educador criou uma ONG só para ajudar pessoas cujas prisões foram forjadas ou baseadas em discriminação racial. Ele não está sozinho. Diante do quadro, escritórios de advogados, coletivos e redes de apoio têm sido formados para buscar Justiça para pessoas presas injustamente.
ONG contra crimes forjados
Após cerca de 180 dias no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Pinheiros, na zona oeste, Dias só conseguiu a liberdade ao reunir provas, testemunhas e chamar a atenção de diversas instituições de Direitos Humanos. Em 19 de dezembro daquele ano, o pensamento era um só: "fundar uma ONG e ajudar forjados", contou para Ecoa.
Contando com um advogado voluntário e uma auxiliar, a ONG SOS Forjados passa por dificuldades financeiras. A estratégia da organização, conta Dias, é prestar auxílio a famílias que carecem de orientação jurídica e psicológica. "A gente corre atrás de advogados, da Defensoria Pública, orientação, atendimento psicológico, além de auxílio no jumbo [como é chamado o envio por familiares de materiais de higiene, medicamentos e alimento para os presos] e dinheiro para visita".
"Quando ganhei minha liberdade, outras pessoas vinham pedir orientação, falando que tinha parente 'forjado', amigo 'forjado'. Quando fui ver, já estava envolvido com um monte de casos", conta Dias. Para ele, não se tratam de casos isolados. "Num raio de 4 quilômetros da sede da ONG, eu encontrei 17 casos com várias evidências de forjamento, com filmagem, dados de GPS".
'Neguinho filho da puta'
A própria prisão de Dias contém alguns desses elementos. Ela ocorreu quando dois policiais militares da Rocam (Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicleta) perseguiam dois jovens. Na fuga, os rapazes jogaram uma sacola na frente da ONG em que ele trabalha. Pouco depois, ele abria a garagem para estacionar seu carro. Começou aí a abordagem. Ouviu coisas como: "neguinho filho da puta, põe a mão na cabeça, o que você está fazendo aqui?". Depois de ser "esculachado pela polícia", conta que o juiz da audiência de custódia não deu muita atenção ao caso e ele foi preso.
"Eu entendo perfeitamente que foi um ato de racismo. O tipo de abordagem que eles fizeram, os argumentos que eles usaram, eles não queriam aceitar que um preto da periferia conhecesse seus direitos, soubesse conversar, usar um vocabulário com que eles não estão acostumados".
Meses após ser solto veio a absolvição, devido à falta de provas e de diversas contradições por parte da polícia - um falava que ele apanhava a droga, outro, que ele a estava recebendo. Durante o ano e meio em liberdade, Dias passou por terapia e agora busca reparação judicial. "Eu entendo que o estado é quem tem que se responsabilizar por preparar maldosamente os policiais", diz.
Foi devolver videogame e acabou preso por roubo
Agora, ele e sua ONG atuam em casos como o do menor M., 16 anos, detido no início desse ano, na região do Parque Bristol, zona sul paulistana. O rapaz saiu de casa para devolver à prima um videogame emprestado. Como a polícia estava trocando tiros com criminosos, correu para se abrigar em um bar, como a maioria dos pedestres. Após perderam os bandidos de vista, os policiais acusaram M. de ser o responsável pelos disparos e de ter participado de um roubo.
Ainda que com evidências em contrário, como o relato de testemunhas, o jovem foi apreendido na Fundação Casa. Só depois de duas semanas, a SOS Forjados conseguiu a liberação do adolescente ao reunir provas como a imagem de câmeras.
O que mais me chamou atenção nesse caso foi a decisão do juiz. Já é um caso de racismo por causa da cor do cara e do território em que ele está. Mas a decisão do juiz foi absurda. No momento da internação, ele copiou e colou a sentença de um outro caso, só trocou o nome, e deu por encerrado
Marcelo Dias, educador social
Direito Antidiscriminatório
O trabalho do educador faz parte de uma vertente jurídica chamada de direito antidiscriminatório. Segundo o advogado Bruno Cândido Sankofá, esta é "uma proteção no campo dos direitos humanos contra qualquer tratamento discriminatório, em especial, em razão da questão identitária". "Não é só proibir que se discrimine, mas proteger para que não haja discriminação. É para a pessoa, a partir do reconhecimento de sua diferença, ter a sua dignidade assegurada e sua cidadania, protegida", explica.
Ele é fundador do Escritório de Advocacia e Assessoria Jurídica Cândido Sankofá, que atua nesta área e foi criado em 2014 no Rio de Janeiro, mas que faz atendimento virtual com parceiros espalhados pelo país.
Sankofá atua na defesa de pessoas como o garçom Jefferson de Azevedo Barcelos, 23, que passou meses na cadeia acusado de furtar um veículo usado para roubá-lo. Isso mesmo, ele foi vítima de um roubo.
De vítima a acusado
Na tarde de agosto de 2017, um veículo modelo Ford Fiesta preto foi roubado. Naquela noite, o carro foi usado em um roubo: o garçom teve celular e outros itens levados por criminosos. Jefferson foi à delegacia registrar um boletim de ocorrência, enquanto o dono do veículo registrou o crime. No dia seguinte, o carro foi encontrado. Dentro dele, estava a carteira de trabalho do garçom.
"O que a delegacia fez? Imputou ao meu cliente a autoria do furto do veículo, que na verdade foi usado para roubá-lo", conta Sankofá. Apesar de não ter recebido intimação alguma, Barcelos foi preso em abril de 2019 em seu local de trabalho. Seu irmão também foi pego acusado de ser cúmplice. Outros dois crimes foram atribuídos a eles.
"Havia dois registros de ocorrência na mesma delegacia, mesmo fato, descrição do veículo que é objeto do roubo, dinâmica do roubo, tudo o que aconteceu. Ainda assim, a autoridade policial daquela delegacia não teve a competência de entender que o meu cliente foi, na verdade, vítima dos mesmos assaltantes que roubaram o veículo."
Dez meses depois, em fevereiro deste ano, o garçom foi solto após ser absolvido. A vítima não o reconhecera. Ainda assim, responde em liberdade ao outro caso, que ele nega ter cometido. Seu irmão, o também garçom e ajudante de obra Everton Barcellos, 32, preso pelo roubo do carro, segue na cadeia há um ano e seis meses.
Sankofá explica que seu escritório atua para encontrar os erros do sistema policial e judicial. No caso do garçom Jefferson, por exemplo, o trabalho foi fazer algo que é dever da polícia: responder perguntas como descobrir onde Jefferson estava e como o veículo foi roubado.
Para o advogado, o racismo institucional da segurança pública se manifesta com mais força em casos de crime patrimonial e em tráfico de drogas. "Muitas vezes, a atribuição do crime se dá até dois anos depois. A pessoa nem sabia que tinha mandado de prisão expedido. Descobre numa blitz policial ou quando vai renovar a habilitação e fica preso. Aí tem a obrigação de lembrar o que fazia um ou dois anos atrás quando aconteceu o crime".
Aguardando a liberdade de seu irmão Everton, Jefferson vê a importância do trabalho dos advogados.
O trabalho que o Bruno desempenha é algo a ser levado sempre adiante. A cada caso que ele vem a defender, eu vejo que a luta contra todo esse preconceito estrutural está muito longe de ter um fim
Jefferson de Azevedo Barcelos, garçom
Em busca de vitórias coletivas
Já o Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), criado em agosto deste ano também com sede no Rio de Janeiro, tenta obter vitórias coletivas e não apenas individualmente.
"Não vai ser criminalizando condutas individuais que a gente vai avançar por este problema social. Não vai ser prendendo um policial aqui e outro acolá que a gente vai romper a sistemática histórica do projeto de violência policial contra a população negra e periférica. O policial é a ponta de lança da violência estatal. Ele não pratica a violência sozinho", explica um dos fundadores, o advogado Joel Luiz Costa.
O instituto, que tem entre os fundadores a advogada Ana Paula Costa e jornalista Ismael dos Anjos, também formará advogados negros para entenderem o funcionamento das instituições judiciais. A primeira turma está prevista para se formar em 2021.
"Não é só direcionar e capacitar, mas que esses profissionais também entendam o peso político da sua atuação enquanto pessoa preta numa sociedade racista e nesse ambiente jurídico que é extremamente branco e também racista", conta Costa.
O outro lado do lado policial
Formar voluntários também é estratégia da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio. Com três anos de operação, a Rede, como é conhecida, promove cursos de direitos humanos em territórios notoriamente reconhecidos por sofrer as mais diversas violações, para além de prisões injustas.
"Garantir que as pessoas se defendam é determinante. Saber dos seus direitos é o mínimo que a pessoa precisa. A ideia é possibilitar que as pessoas se deem conta da criminalização que sofrem", conta Marisa Feffermann, articuladora da Rede e pesquisadora do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais.
A psicóloga pondera que é de suma importância a presença de advogados ou de outras pessoas que acompanhem tudo desde o início. "A Rede tenta mostrar o outro lado, o de quem foi agredido. Infelizmente, a voz do policial é o que determina. A fala dele não precisa ser comprovada, mas a do moleque, tem".
Além de acompanhar a família do preso, a Rede tem um canal direito com o Ministério Público paulista para cobrar que promotores sejam designados para casos de abuso.
Sociedade antirracista?
Para os ativistas do direito antidiscriminatório, é possível construir uma sociedade antirracista. Mas há diferentes abordagens. Para Feffermann, da Rede, o movimento de mudança parte de dentro dos territórios discriminados. "Não existe nenhuma possibilidade de construção de uma nova sociedade se a gente não ressignificar essa história a partir da base", diz. Para Costa, do IDPN, o quadro só irá ser alterado se toda a sociedade se unir.
Acho possível uma sociedade antirracista desde que esse seja um compromisso dos governos federal, estaduais, municipais, da sociedade civil organizada e da mídia. Vencer o racismo estrutural não é pauta exclusiva da população negra. Não conseguiremos fazer sozinhos, tal qual não foi possível vencer a escravidão apenas com a população escravizada
Joel Luiz da Costa, advogado do Instituto de Defesa da População Negra
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