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Qual o caminho para um judiciário que respeite vítimas de violência sexual?

O advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, que defendeu o empresário André Camargo de Aranha - Reprodução
O advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, que defendeu o empresário André Camargo de Aranha Imagem: Reprodução

Marcelle Souza

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

05/11/2020 04h00

O constrangimento que a influencer Mariana Ferrer sofreu durante a audiência de julgamento de uma acusação de estupro poderia ter sido evitado se as carreiras jurídicas discutissem a perspectiva de gênero, como recomenda a Lei Maria da Penha e organismos internacionais. Isso é o que disseram as especialistas ouvidas por Ecoa sobre o vídeo que mostra a conduta do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho durante o julgamento do empresário André Camargo de Aranha.

Segundo as imagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil, Gastão tenta intimidar a jovem mostrando fotos de quando era modelo profissional e aparecia no que ele chama de "posições ginecológicas", insinuando que a conduta da promoter não corresponderia a de uma vítima de um estupro. O advogado ainda disse que "jamais teria uma filha" do "nível" de Mariana e que pede a Deus que seu filho "não encontre uma mulher como você".

No Twitter, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes qualificou como "estarrecedoras" as cenas da audiência de Mariana Ferrer.

Segundo a advogada Carmen Hein de Campos, doutora em ciências criminais e professora de direito da UniRitter/RS, as cenas não são uma exceção, mas representam a forma como muitas vítimas são tratadas quando denunciam violência doméstica ou sexual no Brasil. "O que se observa durante a audiência é uma estratégia de humilhação da vítima por parte do advogado do réu e uma ausência profunda de empatia por parte dos demais. Tem ali um pacto de homens da elite de autoproteção", diz. "Esse tipo de humilhação é inaceitável".

Quando a lei é machista

Para a especialista ouvidas por Ecoa, o vídeo mostra que Mariana foi desrespeitada e submetida a uma segunda violência (a primeira seria o estupro em si), e que tanto a postura do advogado como a omissão do juiz, que não interrompeu o defensor do réu, são resultado de uma cultura machista que permeia a Justiça brasileira, e tenta culpar a mulher e proteger o agressor.

"A causa primária desse tipo de julgamento é o machismo. Essas estratégias de buscar o passado da vítima, como se algo que ela tivesse feito deslegitimasse a denúncia, como se estivesse em busca de fama e dinheiro, são muito comuns. Eles usam elementos identitários ligados à masculinidade, como perseguição e vingança, que não compõe a feminilidade, vista como dócil, para depreciar a vítima", diz a advogada Isabela Guimarães Del Monde, cofundadora da Rede Feminista de Juristas.

Esses argumentos são resquícios da categoria "mulher honesta", retirada só em 2005 do Código Penal brasileiro. Isso faz, por exemplo, com que apenas em crimes sexuais haja o questionamento sobre a roupa ou conduta da vítima antes e no dia no dia do crime. "Eu nunca vi ninguém fazer essas perguntas ou exigir prova cabal de resistência em caso de roubo", questiona Campos.

Até 2009, o estupro fazia parte do item "Dos Crimes Contra os Costumes", do Código Penal. Foi só após a promulgação da lei nº 12.015/2009 que o título passou a se chamar "Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual", deslocando o entendimento desse crime não mais como questão de honra (e, portanto, de caráter privado), mas como algo que viola a liberdade sexual. "Com essa lei, o cerne da questão passa a ser o consentimento", diz Del Monde.

A Lei Maria da Penha, de 2006, também foi um marco, já que reconheceu que pode haver estupro em relações conjugais.

No caso de Mariana Ferrer, a Justiça considerou que as provas apresentadas no processo não eram suficientes para caracterizar que ela estava embriagada e que a relação sexual não havia sido consentida.

"A gente tem um princípio que é o in dubio pro reo, ou seja, na dúvida, você não condena; o que tem o objetivo de não prender injustamente. Mas interessante ver como ele é aplicado em caso de estupro, mas não funciona da mesma forma no caso de um adolescente negro preso com um cigarro de maconha e condenado apenas com o depoimento do policial", questiona Del Monde.

Como mudar essa realidade?

No vídeo da audiência, Mariana Ferrer é a única mulher, ao lado de quatro homens — o advogado do réu e os demais, que não interrompem as agressões à vítima.

"Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?", questionou Mariana ao juiz, que em seguida pergunta se ela gostaria de um tempo para tomar água enquanto pede ao advogado para manter um "bom nível".

Mas será que, se a audiência fosse presidida por uma mulher, Mariana Ferrer teria passado por tamanho constrangimento? "Eu acredito que poderia ter sido diferente, mas não dá para dizer que todas as mulheres são aliadas da luta contra o machismo", diz Del Monde. "Em uma audiência de disputa de guarda, já vi o advogado do pai trazer elementos depreciativos da mãe, dizer que ela saía, ia para a balada, e a juíza interromper, dizendo que isso não tinha relação com a causa", lembra.

Segundo estudo "Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário", divulgado em 2019 pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ainda é desigual a proporção entre homens e mulheres nesses postos. No Tribunal de Justiça de Santa Catarina, onde o caso de Mariana Ferrer foi julgado, as magistradas são 34%, pouco abaixo da média nacional, de 38%. O documento mostra ainda a dificuldade que as mulheres têm para avançar na carreira.

"Aumentar a presença de mulheres nesses espaços é importante, porque gera um constrangimento. É mais fácil que elas percebam essa revitimização, mas é claro que não é suficiente, porque muitas ainda reproduzem o discurso machista e do violador", diz Carmen Campos. Segundo a professora, tão relevante quanto o número de magistradas seria aumentar a discussão sobre gênero no sistema judiciário.

A Lei Maria da Penha, por exemplo, lista, no artigo 8º, a capacitação permanente quanto às questões de gênero e de raça ou etnia de servidores que atuam nas polícias, no Poder Judiciário, no Ministério Público e na Defensoria Pública como medida de prevenção à violência contra a mulher.

A necessidade de formação específica desses profissionais também conta na recomendação número 33 da Cedaw (sigla em inglês para Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres). Segundo o órgão, que é vinculado às Nações Unidas, a capacitação dos agentes seria necessária porque, "em todas as áreas do direito, os estereótipos comprometem a imparcialidade e integridade do sistema de justiça, que podem, por sua vez, levar à denegação da justiça, incluindo a revitimização de denunciantes."

Isso significa que a discussão desses temas nas carreiras jurídicas ajudaria a evitar, por exemplo, que durante uma audiência fossem aceitas argumentações que fugissem aos fatos narrados, como os questionamentos sobre a conduta da vítima, além de promover uma escuta mais empática e acolhedora das mulheres que sofrem uma violência.

Outras ações

As especialistas ouvidas pela reportagem destacam ainda a necessidade de ampla discussão sobre violência de gênero e machismo nos meios de comunicação, nas escolas e nos espaços de socialização. Isso porque a pressão da sociedade forçaria o Judiciário a acolher melhor as vítimas e garantir julgamentos mais justos.

Além disso, dizem ser necessária a apuração dos fatos e a aplicação de medidas administrativas cabíveis sobre as condutas do advogado, do juiz e do promotor que participaram da audiência de Mariana Ferrer. "As investigações têm que ser exemplares, porque não é possível que um juiz admita esse tipo de postura em uma audiência, nem que o MP seja conivente com a revitimização dessa mulher", diz Campos.

Após a divulgação do vídeo da audiência, o conselheiro Henrique Ávila, integrante do Conselho Nacional de Justiça, pediu para que a Corregedoria Nacional abrisse uma reclamação disciplinar contra o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. Ávila classificou como "chocantes" as imagens do vídeo, que segundo ele equivalem "a uma sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual".

O CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) e a Corregedoria do Ministério Público, por sua vez, estão apurando a conduta do promotor Thiago Carriço de Oliveira. Nesta quarta (4), o Ministério Público de Santa Catarina disse que o vídeo divulgado pelo site The Intercept foi editado e não mostra os trechos em que o promotor e o juiz interferem contra excessos praticados pelo advogado Cláudio Gastão.

Em nota, a Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) afirmou que o tratamento dado a Mariana Ferrer é "inadmissível". "As cenas estarrecedoras mostram um processo de humilhação e culpabilização da vítima, sem que qualquer medida seja tomada para garantir o direito, a dignidade e o acolhimento que lhe são devidos pela Justiça".

A Curadoria Ecoa

A advogada Luana Pereira da Costa, mestra em sociologia e curadora de Ecoa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

As histórias e pessoas apresentadas todos os dias a você por Ecoa surgem em um processo que não se limita à prática jornalística tradicional. Além de encontros com especialistas de áreas fundamentais para a compreensão do nosso tempo, repórteres e editores têm uma troca diária de inspiração com um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, e que formam a nossa Curadoria. Esta reportagem, por exemplo, nasceu de uma conexão proposta por Luana Pereira da Costa, advogada e mestra em sociologia.