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"Ligue 180" não funciona para todas; como garantir acesso a quem precisa?

Mulheres indígenas durante marcha em direção ao Congresso Nacional em 2019 - Karla Mendes/Mongabay.
Mulheres indígenas durante marcha em direção ao Congresso Nacional em 2019 Imagem: Karla Mendes/Mongabay.

Bianca Pedrina

Colaboração para Ecoa, do Nós, Mulheres da Periferia

17/11/2020 04h00

A Lei Maria da Penha é considerada uma das principais políticas públicas voltadas para os direitos das mulheres e contra a violência de gênero. Em vigor desde 2006, o acesso aos serviços de proteção para sua aplicabilidade quando se trata de contextos sociais distintos ainda é um desafio.

A lei assegura o distanciamento do companheiro quando envolve risco para as mulheres, e a criminalização da violência doméstica e familiar contra esse gênero. Ela enumera as formas de violência, não apenas a física, mas também psicológica e patrimonial (que põe em risco todo e qualquer patrimônio construído pela mulher em sua vida).
O Art. 2° da Lei garante que "toda a mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social", preceitos que constam na constituição do país.

Na prática, no entanto, o acesso à Lei para mulheres trans, quilombolas, indígenas e em situação de rua ainda é uma barreira que passa por questões estruturais, geográficas, socioeconômicas, etnoculturais e de preconceito.

Entender quais são as especificidades e dificuldades de acesso a essas populações é imprescindível para construir a garantia de que esses segmentos da sociedade consigam ser abarcados pelo serviço.

Mulheres de comunidades tradicionais apontam dificuldades

As ligações para o 180, central nacional de atendimento à mulher, criado em 2005 para denúncia de casos de violência, aumentaram em 34% no período de março a abril de 2020. Serviço que não chega para todas, quando se faz o recorte dessas especificidades.

"Vemos nas campanhas o estímulo para ligar no 180 para denunciar. Só que esse recado é para as mulheres que moram nas cidades; nós estamos em comunidades rurais em que a maioria delas ainda não tem acesso à internet e boa parcela sequer tem energia elétrica. Se acontece uma situação de violência dentro da comunidade, e você vai acionar a polícia, quando chegar quem tinha que morrer já morreu, quem tinha que fugir já fugiu", frisa Maria Aparecida Mendes, 49, quilombola de Conceição das Crioulas, situado no município de Salgueiro, em Pernambuco.

Maria Aparecida foi uma das coautoras do livro "Mulheres Quilombolas Territórios de Existência Negras Femininas", e fez sua dissertação de mestrado sobre o enfrentamento à violência, que compõe parte do livro.

A pesquisadora foi vítima de violência doméstica dentro da comunidade em que vivia e conseguiu romper com esse ciclo após quase 22 anos. Reconhece que recorreu ao serviço, no entanto, não foi até o fim na denúncia.

"Pouco se fala sobre as situações de violência das mulheres nas comunidades tradicionais. É necessário que a gente quebre essa visão romantizada que a violência não ocorre dentro dos quilombos, ela ocorre sim, infelizmente", frisa.
A quilombola aponta a importância da Lei, mas pontua as dificuldades para que esse direito chegue até o território, que tem formas de organização específicas. "A Lei Maria da Penha é uma conquista e não podemos deixar de reconhecer a importância da luta do movimento feminista para sua existência. No entanto, em relação à vida das mulheres quilombolas, existem alguns pontos que, infelizmente, não conseguimos acessar", alerta.

"Em um dos artigos da Lei é assegurado que mulheres em situação de violência sejam levadas para casas abrigos, onde ficará em situação de isolamento para se manter viva. Novamente esse trecho é difícil de ser aplicado em territórios quilombolas, porque muitas mulheres que passam por situação de violência são lideranças. Tirar as mulheres dos seus territórios é mais uma forma de violência contra elas e contra toda comunidade", explica.

Outra barreira é a distância para fazer a denúncia, devido ao afastamento das comunidades quilombolas dos centros urbanos, onde estão localizadas as delegacias da mulher.

Dados do relatório intitulado "Racismo e violência contra quilombos no Brasil", de 2018, aponta que o número de assassinatos de quilombolas no Brasil saltou de 4 para 18 de 2016 a 2017, o que configura um aumento de 350% no período. De 2008 a 2017, foram assassinados 32 homens e seis mulheres quilombolas.

Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), ao todo, existem cerca de 3.200 comunidades quilombolas oficialmente reconhecidas no Brasil.

Maria Aparecida pondera sobre a aplicabilidade da Lei Maria da Penha a questão punitivista em comunidades quilombolas, que já vivem contextos de violência pelos conflitos territoriais, segundo ela "promovidos pelo Estado e seus aliados".

"A gente sabe o que o Estado tem feito nas comunidades tradicionais, que mais tem matado do que garantido a vida dessas populações, mas a gente acredita que o Estado, através dos profissionais de segurança, precisa procurar as lideranças femininas, assim como a comunidade, não com o objetivo de punição, mas de estabelecer um diálogo e aproximação para entender os contextos e atuar com mais efetividade", avalia.

A quilombola destaca que é necessário que os profissionais que têm a responsabilidade da aplicabilidade da Lei passem por um processo de formação adequado e se sensibilizem com essa questão.

"Temos que continuar defendendo a importância da Lei, mas defendemos que se busque as formas de equidade para que ela chegue até as mulheres de contexto comunitário. É preciso que esses agentes procurem estudar e ler os autores e autoras que trazem temas relacionados ao enfrentamento, inclusive os de autoria de mulheres quilombolas", aponta.

Entender as configurações do território é um desafio que também é enfrentado quando se fala de violência contra mulheres indígenas, que têm contextos similares aos das quilombolas.

Dados agregados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, apontam que entre 2007 e 2017 houve mais de mil notificações de casos de violência contra mulheres indígenas no país.

De acordo com o último Censo (2010), elas eram 448 mil pessoas, o que representa metade da população indígena do Brasil composta por 897 mil indivíduos.

Hamangaí Pataxó, 23, indígena Pataxó Hã-Hã-Hãe e curadora de Ecoa, mora na cidade de Cruz das Almas que fica localizada no Recôncavo da Bahia. Ela precisou acionar a Lei após sua irmã, em 2017, ter sofrido uma agressão de um homem indígena, ao ser empurrada de uma ponte nas imediações da aldeia Caramuru Catarina Paraguaçu, localizada no município de Pau-Brasil, Bahia.

"Acionamos a delegacia comum, na cidade de Pau Brasil. O pessoal da delegacia nos orientou de forma equivocada e não disseram que precisava fazer o corpo de delito", relembra.

Depois de muita batalha, demorou quase dois anos para o caso ser julgado. No entanto, como o agressor era menor de idade e réu primário, a pena foi de ceder cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade.

Para ela, é um desafio para as mulheres indígenas que enfrentam questões geográficas, já que as aldeias ficam distantes dos centros urbanos, onde estão as delegacias, além da inexistência de casas abrigo, que levem em conta as especificidades dos indígenas. "As pessoas que criaram a Lei Maria da Penha não ouviram as mulheres indígenas. E existe uma angústia de se deparar com essa situação de violência e se sentir impotente", diz.

Hamangaí reforça ainda as dificuldades estruturais. "A questão de acesso à internet, como vai ligar para fazer uma denúncia, se em muitos casos o sinal não chega? Tem aldeias indígenas que ficam a 60 quilômetros da cidade, locais onde estão as delegacias para fazer a denúncia. Se acionarmos a Polícia Militar para entrar na aldeia, tem que ter autorização da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), então são muitos protocolos", elenca.

O preconceito étnico-racial enraizado na sociedade também é levantado por ela como uma dificuldade. "Se sair da aldeia vai enfrentar racismo, preconceito, fora os conflitos de terra, a visão dos povos indígenas é de ladrão, invasor".
Existe ainda a barreira da língua e o entendimento de como cada etnia resolve internamente a situação de violência contra as mulheres nas aldeias, para não ser algo impositivo e de alguma forma igualmente violento.

Hamangaí, que integra uma rede de mulheres que debate esse tema no contexto indígena, aponta a aproximação dos órgãos protetivos como avanço para que a Lei alcance esta realidade. "Um dos sonhos da rede de mulheres é construir essa casa de acolhida, que tenha profissionais e suporte, mas que seja dentro da aldeia indígena, porque tem a questão do pertencimento do território", avalia.

Ela ressalta que para a aplicabilidade da Lei deveria haver profissionais que "tivessem essa vivência do território. Ter um psicólogo indígena que entenda essa problemática. Porque, às vezes, a gente se depara com profissionais de visão europeia", argumenta.

"Eu acredito que é preciso ter o contato desses órgãos em nosso território com mais frequência, não apenas em datas específicas, de ouvir essas mulheres, de possibilitar recursos para as associações de mulheres que já atuam internamente contra a violência doméstica. Tudo que fazemos é sem recurso nenhum".

Quando a casa é o espaço público, o acesso à Lei Maria da Penha é ainda mais difícil

Em contextos urbanos, a situação para aplicabilidade de Lei em setores específicos da sociedade é ainda complexa.
Em um país que é o quinto no ranking mundial em mortes contra mulheres, de acordo com levantamento feito pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), o acesso à Lei ainda é uma limitação.

Segundo levantamento do Fórum de Segurança Pública, o número de feminicídios no Brasil nos períodos de março a abril de 2020 cresceu 22,2%, comparado ao ano passado.

Quando falamos de mulheres que não têm casa e ocupam os espaços públicos, esse direito parece ainda inalcançável. Na cidade de São Paulo, a população de rua saltou de 15.905 em 2015, para 24.344 em 2019, um aumento de 53% no período, segundo um censo realizado pela Prefeitura de São Paulo. O número é o maior desde que este levantamento é feito.

O estudo, feito no final de 2019, apontou que 15% desta população é formada por mulheres, que convivem em contextos de violência e, em muitos casos, para sair desse ciclo encontram a rua como único refúgio.

"Quando a gente chega a mulheres em situação de rua em um contexto de violência seja física, patrimonial ou as indicadas na Lei, tem uma questão importante que é o fato de existirem mulheres em situação de rua que chegam a essa condição justamente porque o sistema de proteção em muitos casos não funciona, leva, em alguns casos, as mulheres migrarem para situação de rua como uma forma de proteção, para fugir do agressor", alerta a assistente social Nayara Gonçalves, 29, que trabalha com pessoas em situação de rua há quatro anos, e também é membra do jornal Vozes da Rua, que aborda o tema.

Nayara pontua sobre as questões que na rua todas as expressões de violência que as mulheres já sofrem são intensificadas. "A agressão física é bem comum entre casais em situação de rua. É comum as mulheres terem uma relação com aquele homem e as agressões serem constantes, de ela aceitar essa condição para se proteger, porque neste caso é apenas um que a agride, não vários", explica.

Nayara aponta as debilidades da Lei, em que muitos profissionais não estão preparados para receber a mulher em situação de rua. "Existem várias condicionantes até mesmo de preconceito e todo estigma que se carrega por você estar na rua, principalmente quando envolve uma relação em que os envolvidos façam uso de substâncias, de que ela está na rua porque ela quer", explica.

Em muitos casos, o filtro para acessarem a Lei passa pela assistência social, o que não deveria ser uma condicionante. "Elas deveriam em teoria poder chegar à delegacia e fazer a denúncia, mas por várias condicionantes, econômicas e objetivas, além de questões subjetivas, impossibilitam isso, quando a gente pensa em uma pessoa em situação de rua, porque ela está vestindo uma roupa que está suja, ou ela não teve condições de fazer uma higienização, então, por conta disso, a assistência social acaba sendo esse filtro, mas não deveria ser assim, eles deveriam atender sem nenhum tipo de distinção ou preconceito", avalia.

A assistente social já acompanhou casos de mulheres fazerem a denúncia, mas não conseguirem ir adiante por falta de condições financeiras, de arcar com o transporte público para chegar nesses lugares, o que as leva a permanecem no mesmo território e mantendo sua relação com o agressor.

Na avaliação de Nayara, a mudança desse cenário passa por uma questão de investimento. "Muitas vezes os trabalhadores envolvidos têm boa vontade e querem fazer seu trabalho da melhor maneira, mas não tem condições estruturais para isso. Assim como os serviços que atendem a população de rua e talvez um entendimento das especificidades das particularidades dessas mulheres".

A assistente social reforça que tirando os trabalhadores que lidam com a população em situação de rua, o resto dos serviços, como a delegacia da mulher e o judiciário, acabam não levando isso em conta. "Precisaria de muita capacitação para essas pessoas, conhecimento da legislação e contato mesmo com essas mulheres, o que acaba não existindo", argumenta.

"A luta pela aplicabilidade de Lei é uma conquista de todas as mulheres, porque quando a gente fala em violência doméstica parece que só se destina para alguém que tem casa, mas e nos casos das mulheres em situação de rua?", questiona. "Elas não são vistas neste contexto porque a casa delas é o espaço público, ou quando as pessoas percebem que existe isso, cometem uma responsabilização mais cruel de que é uma opção dela sofrer essa violência", aponta a assistente social.

Mulheres trans e as barreiras para aplicabilidade da Lei

A Lei Maria da Penha também é garantida para mulheres trans (pessoa que foi atribuída ao sexo ou gênero masculino ao nascer que possui uma identidade de gênero feminina).

Helena Brito, mulher trans, 33, que trabalha em uma seguradora de automóveis e mora na zona norte de São Paulo, no bairro do Tucuruvi, reconhece que mesmo tendo essa seguridade na Lei, pensaria duas vezes antes de acioná-la.

Segundo levantamento bimestral feito pela Associação Nacional de Transexuais e Travestis (Antra), nos oito primeiros meses de 2020 foram registrados mais assassinatos do que em o ano passado inteiro. Todas as 129 vítimas mapeadas tinham expressão de gênero feminina.

Helena nunca precisou acessar a Lei, mas já serviu como testemunha de uma amiga que registrou denúncia de violência doméstica. "Quando eu fui acompanhar essa minha amiga para servir como testemunha, e o policial pegou meu RG, ele falou meu nome de registro na época, porque eu ainda não havia feito a atualização da minha documentação, eu tive que corrigir ele: 'olha no boletim você vai colocar meu nome social', e foi difícil, porque como você se impõe para uma autoridade, no meio de um atendimento que envolvia uma briga familiar para garantia de meus direitos?", relembra.

Diferente de muitas mulheres trans, ela conseguiu minimamente se inserir na sociedade. Tem um trabalho, acessou a universidade e reconhece que esse não é o contexto da maioria. "Essa questão cabe um recorte de raça, porque eu sou branca, por ter feito a minha transição tardiamente, eu consegui acessar a universidade, sem as barreiras existentes de ser uma mulher trans, e isso é muito diferente do que a maioria das minhas amigas tem de realidade, muitas sequer conseguiram terminar o Ensino Médio, a maioria está na prostituição", aponta.

Diante dessa experiência e de relatos de amigas trans, ela avalia que o acesso à Lei é estrutural, que deve superar as barreiras que ainda existe nas instituições no tratamento dessa parcela da sociedade. "Se eu for a uma delegacia, como eu vou ser abordada, como serei vista? Será que a minha 'mulheridade' vai ser posta em xeque ali naquele momento se eu precisar acessar esse serviço? Eu sempre me questiono, será que é um ambiente que eu vou ter segurança? Pisar em um ambiente desse que é majoritariamente masculino, eu vou sofrer preconceito?", questiona.

Helena já conseguiu a mudança de nome em sua documentação, mas reconhece que muitas mulheres trans ainda não, e aponta que isso pode ser um empecilho na hora da denúncia. "Se for uma pessoa trans que não está dentro do padrão de feminilidade será mais julgada ainda. Como vemos em muitos casos para mulheres cis, esse atendimento muitas vezes não dá em nada, imagina para uma mulher trans", pondera."Por esses medos, a maioria das mulheres trans que eu conheço se defendem por elas mesmas, e não procuram o serviço", reconhece.

Outra questão apontada por Helena é que a maioria das mulheres trans não sabe que também podem ser assistidas pela Lei, traçando o acesso à informação outro gargalo para a aplicabilidade da Lei.

Existe o Projeto de Lei 191/2017, de autoria do senador Jorge Viana (PT/AC) que tramita no Congresso e pretende ampliar o alcance da Lei Maria da Penha e garantir proteção às mulheres trans, o que pode reforçar como mais um elemento da lei de proteção a esse segmento.

Pensando que esse problema da transfobia é estrutural, Helena avalia que as delegacias não estão preparadas para receber mulheres trans. "A mudança é estrutural, é preciso mais delegacias da mulher, mudança da polícia. Eu tenho medo da polícia. Temos que repensar toda uma estrutura para essa efetividade", avalia.

Doutora em Ciências Sociais e atuante na linha de pesquisa sobre violência doméstica e familiar em Cariri (CE) há cerca de 10 anos, Antonia Eudivania de Oliveira Silva, 33, defende que as relações sociais e normativas têm que ser repensadas para a efetividade da Lei nesses contextos.

No país, houve alguns casos em que mulheres trans conseguiram acionar a Lei Maria da Penha como medida protetiva, no entanto, ainda existe um cenário cuja definição da aplicabilidade cabe à interpretação do jurista.

"Dentro da nossa cultura e da forma como consideramos ser cidadão, se o sujeito trans se considera mulher, então isso tem que ser respeitado. O objetivo da Lei é proteger a pessoa humana", explica. No entanto, ela acredita que a interpretação da justiça ainda pode variar, trazendo um problema.

"Não podemos esquecer que a Lei é produzida dentro de um âmbito específico e a luta é para que todas as instituições tenham representatividade. Se formos pensar nos pormenores da Lei, quem a coloca em prática dentro das instituições jurídicas em sua maioria não são mulheres, nem são corpos marcados por uma intersexualidade. Se a gente for pensar na justiça que faz funcionar toda a jurisprudência e que faz funcionar a Lei Maria da Penha, a gente não tem em sua maioria mulheres à frente dessas instituições", aponta.

A garantia da equidade no acesso à Lei

Antonia Eudivania ressalta que é preciso reforçar a Lei Maria da Penha como principal política pública no Brasil voltada para as mulheres, e a mais importante no combate à violência doméstica e familiar. O desafio é encontrar maneiras de pensar na prática desta Lei.

Essa reflexão passa também passa por outros recortes étnicos raciais e de gênero. "Os corpos que estão lá para fazer a Lei funcionar são corpos formados por essa mesma sociedade, machista, heteronormativa, preconceituosa e misógina", aponta.

"Se pensamos em mulheres quilombolas ou indígenas, além da denúncia ser um fato muito dificultoso, a gente ainda se depara com praticamente a inexistência de medidas protetivas. Como você aplica uma medida protetiva de manter distância dentro de uma aldeia, quem assegura isso, de que forma isso vai acontecer em comunidade, onde o contato e a forma de convivência é a forma de sobrevivência daquele grupo?", questiona. "Por isso, ao se pensar nessas leis a gente tem que pensar nos indivíduos que vão ser acolhidos por ela. Precisa do movimento de pensar que a gente está falando de todas as mulheres. "

A Lei Maria da Penha garante na proteção da mulher medidas protetivas, desde a proibição de aproximação do agressor à vítima, até a retirada dessas mulheres de suas casas, as encaminhando para casas abrigo. Pode ser elencado até o deslocamento da vítima para outro estado.

Para a cientista social, a aplicabilidade da Lei passa por uma construção de o ser mulher não ser universal, existem especificidades que precisam ser levadas em conta. "É preciso pensar nas mulheres trans, nas indígenas, quilombolas e em situação de rua. Para a aplicabilidade da Lei temos que ter o cuidado para não deslegitimar o que já foi conquistado, que é um avanço enorme apontar essa violência como crime, o que não quer dizer que não possamos fazer críticas para melhorar essa aplicabilidade. Os agentes da Lei precisam ter uma formação adequada para a instituição em que eles estão", pondera.

Regina Célia, 52, mulher negra, cofundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha, destaca que a finalidade da organização é para garantir o cumprimento do preâmbulo do artigo 8º da Lei, para prevenção, punição e erradicação de toda e qualquer violência doméstica praticada contra a mulher, com atuação na prevenção.

"Neste artigo é tratado justamente sobre a formação dos agentes, capacitação da policial civil, militar, sobre as medidas integradas de prevenção. Além da promoção de estudos e estatísticas sobre o tema", explica.

"Quando eu falo da questão de formação, a gente está alinhada com o artigo oitavo da Lei, que é um dos fundamentos da sua aplicabilidade, porque ele incide sobre o enraizamento da mentalidade do machismo e do patriarcado. Tem a perspectiva de viabilizar uma desconstrução dessa mentalidade por meio de instrumentos pedagógicos e dos sistemas de educação", reitera.

Regina Célia reconhece que muitos entendem que a Lei não é eficiente em alguns contextos. "Não é uma questão de reproduzir uma prática e padronizar, mas uma questão de práxis, que deve ser fruto de uma reflexão e crítica da sociedade em que vivemos, machista e patriarcal. E isso parte do ambiente escolar. Não precisamos apenas de uma aplicabilidade efetiva, mas eficiente", argumenta.