Kabengele Munanga e filho Bukassa: afetos, identidade e consciência negra
Figuras reconhecidas em seus meios de atuação, Kabengele Munanga e Bukassa Kabengele compartilham, além da relação de pai e filho, histórias de vida que atravessam três continentes. Suas experiências em países como Congo, Bélgica e em particular no Brasil, pátria de adoção da família há quatro décadas, forjaram em ambos uma consciência ímpar sobre a questão racial na sociedade.
Antropólogo, Munanga transformou sua consciência em uma contribuição acadêmica pioneira e das mais relevantes sobre a condição da população negra no país. Transmitiu-a ainda aos filhos, que desde cedo aprenderam a não se calar diante da injustiça e da discriminação.
O professor foi homenageado em um evento promovido pela ONU e transmitido por Ecoa em 18 de novembro e se emocionou com as palavras de colegas e do filho mais velho, que surpreendeu Munanga com uma participação ao final, só voz e violão que tiraram lágrimas do pai. Bukassa Kabengele é cantor e ator e interpreta Nelson Mandela no especial "Falas Negras", que estreia hoje (20) na TV Globo em comemoração ao Dia da Consciência Negra.
Pai e filho concederam a Ecoa uma entrevista conjunta, na qual falaram sobre suas trajetórias pessoais e visões a respeito da desigualdade racial no país.
O choque com o Brasil
Com uma formação acadêmica realizada entre África e Europa, Munanga chegou ao Brasil em 1975, após ter ganhado uma bolsa para concluir seu doutorado na Universidade de São Paulo. Com base na imagem que o país projetava de si no exterior, esperava encontrar uma sociedade livre de desigualdades e relações raciais harmônicas.
Mas a situação era bem diferente, a começar pela universidade. Ele afirma ter sido o primeiro pós-graduando negro do Departamento de Antropologia. Tornaria-se, em seguida, o primeiro docente negro da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
"Me dei conta de que a minha situação não era a mesma dos cidadãos negros [brasileiros]", disse. A ausência de negros na universidade brasileira à época chamou a atenção do pesquisador, que começava a compreender o abismo social entre brancos e negros no país.
"Eu me perguntava: Como é que pode, em um grande país como o Brasil, com tantos negros, eu ser o primeiro?"
A chegada dos filhos em 1980 aguçou ainda mais sua percepção do problema. Na rua, na escola, episódios de discriminação eram parte do cotidiano das crianças.
Meus filhos tomaram consciência da existência do racismo a partir do Brasil. Aqui foram discriminados pela primeira vez.
Kabengele Munanga
Bukassa tinha dez anos de idade quando veio para o Brasil e se recorda de várias dessas agressões, como ter sido chamado de macaco por outra criança antes mesmo de saber o que a palavra significava ou de ser levado com os irmãos no bagageiro da perua escolar, enquanto colegas brancos ocupavam sempre a parte da frente do veículo.
"A gente começou a perceber que tinha alguma coisa errada. Ainda não conseguíamos decodificar o que era por não dominar a língua, mas havia uma dinâmica muito diferente e muito agressiva [no Brasil]", disse.
Mesmo sem entender, de início, o que se passava, Bukassa afirma que ele e seus irmãos sentiam a urgência de se defender: "Não estávamos acostumados a baixar os olhos para ninguém, não tivemos essa educação. Minha referência não era de um lugar onde tivéssemos que baixar os olhos para o outro que é branco. Não entendia isso".
Com o tempo e problemas ainda constantes com colegas de um ambiente escolar predominantemente branco, ele e os irmãos passaram a associar as agressões e o tratamento diferente ao racismo.
Comecei a entender muito sutilmente, também pela educação dentro de casa. Mas ainda não tinha consciência. A negritude é uma construção política, é um entendimento de mundo. Uma consciência através da qual criamos nossas conexões, a partir das nossas referências e identidades para lutar pelo nosso lugar na sociedade.
Bukassa Kabengele
Além da sua própria, a experiência cotidiana dos filhos com o racismo também impactou a trajetória acadêmica do professor, que viu na situação do negro na sociedade brasileira um tema social relevante, com o qual, além disso, identificava-se pessoalmente.
"Eu poderia ter negado a existência do racismo a partir do meu sucesso, cair no mito da meritocracia. Mas via meus próprios filhos serem discriminados todos os dias, não podiam nem sair de casa para comprar pão numa padaria sem serem abordados pela polícia", disse Munanga. Segundo o professor, essa observação do cotidiano da sociedade conscientizou-o a fazer um trabalho de pesquisa de solidariedade e contribuição para a mudança.
Reflexão em família
Ao contrário das casas de amigos brancos e de classe média que frequentava na juventude, onde imperava o silêncio sobre a questão racial, Bukassa Kabengele afirma que a discussão sempre esteve presente, de maneira natural, na vida da família. Ele busca fazer o mesmo hoje com a filha de 13 anos.
"A referência do meu pai na nossa formação crítica foi muito importante, embora cada um vá fazendo sua leitura de mundo porque somos únicos nesse sentido, mesmo sendo afetados pela sociedade", disse.
Munanga também afirmou aprender com os filhos. "Eles são parte de uma nova geração da negritude, trazem novos elementos de reflexão que não fizeram parte do meu tempo. Eu sou um colonizado mental, toda minha educação se deu dentro da colonização, diferente da de Bukassa", disse.
Em todos os nossos encontros familiares há os momentos de risada, de brincadeira, mas chega uma hora em que todos os filhos tocam na questão de como a sociedade continua correspondendo aos nossos corpos e nossas vidas. Desde muito cedo até hoje continuamos discutindo nossas condições de existência partindo dessa problemática do racismo. É um processo e um aprendizado continuado.
Bukassa Kabengele
O momento atual e o futuro
A implementação de cotas nas universidades públicas a partir dos anos 2000, que tem permitido um acesso inédito da população negra ao ensino superior e transformado a cara das universidades no país, é vista por Munanga como a maior mudança que viu acontecer em seus 45 anos de Brasil. Apesar de ainda haver sub-representação no meio acadêmico e nas demais esferas da sociedade, ele vê a consciência crescendo a partir dessa política.
Defensor de primeira hora das ações afirmativas para negros, o professor lembra a reação contrária de setores da sociedade à discussão, inclusive dentro da própria academia. Apesar de toda a articulação do movimento negro em décadas anteriores, a pauta racial ainda era negada.
Talvez por ter acompanhado o longo caminho que o debate racial — já presente nos meios acadêmicos e ativistas desde meados do século 20 — percorreu até se tornar mais difundido na sociedade brasileira, Munanga se surpreendeu com as mobilizações recentes em torno da questão, com pessoas indo às ruas protestar contra a violência policial e o racismo mesmo durante a pandemia.
A história sempre tem surpresas, agora é torcer pra que essa consciência permaneça. Porque se a sociedade como um todo não está mobilizada, não tem consciência de seus problemas e desigualdades para pressionar os políticos, nada muda.
Kabengele Munanga
Aos 80 anos, boa parte deles dedicados ao estudo da questão racial no Brasil, o professor se diz esperançoso com a mudança. Se houver conscientização e solidariedade da população branca, para ele, a situação do negro no país será diferente dentro de meio século, período equivalente ao que vive em solo brasileiro.
"Os racistas não morreram. Os racistas estão aqui presentes, estão na estrutura do poder. Mas para mim há esperança, porque nunca se falou tanto do racismo no Brasil como este ano, em todos os lugares", afirmou.
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