As escolas deveriam adotar banheiros de gênero neutro?
"Se existe uma cultura bigênera, o altar, a igreja deste lugar, é o banheiro", disse ao UOL a cartunista Laerte ao contar que, desde que iniciou sua transição de gênero, em 2004, já havia sido discriminada tanto em banheiros femininos quanto masculinos.
Esse "não-lugar" faz muitas pessoas defenderem a criação de banheiros unisex (também chamados de sem-gênero ou de gênero neutro), sem discriminação a pessoas trans, não-binárias (que não se identificam como homens ou mulheres) ou intersexos (que nasceram com órgãos sexuais híbridos). Essa seria uma forma, defendem ativistas, de diminuir as violências de pessoas que não se enquadram ou não são aceitas em espaços para homens ou mulheres.
"Muitas vezes, a violência que sofremos no banheiro é mais mental do que física, porque esse espaço não é visto para você [pessoa trans], que não pode estar em nenhum dos dois lugares, porque não se adequa aos padrões do que é lido como homem ou mulher", diz Amiel Vieira, sociólogo, homem trans e membro da Abrai (Associação Brasileira de Intersexos).
Ele lembra, por exemplo, de um amigo trans que não usava o banheiro nas oito horas de trabalho porque tinha medo de ser agredido. Além disso, o próprio Amiel já sofreu violência no início da sua transição de gênero. "Há dois anos, eu estava em um shopping no Rio de Janeiro, fui utilizar o banheiro masculino e três homens me pegaram enquanto eu lavava as mãos e me levaram à força para o banheiro feminino. Eles disseram: 'o seu banheiro é aqui. Na próxima vez, não vai ser só isso que vamos fazer'", conta.
Por que o banheiro é uma questão central em discussões sobre gênero?
A psicóloga Elizabete Franco Cruz, professora da EACH-USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo), explica que, antes de discutir os banheiros, é preciso entender que a nossa cultura é pensada e organizada para homens e mulheres cisgêneros (cuja identidade corresponde ao gênero atribuído no nascimento).
"A sociedade produz as relações de gênero de um modo muito fixo e binário, e tudo o que é diferente dessa norma causa estranhamento. Mas não é mais possível pensar assim, porque essa ideia não dá conta de toda a pluralidade dos seres humanos", diz. "O banheiro fica sendo um espaço de representatividade e poder, onde essa visão cis, binaria e heterossexual do gênero é referendada em um conjunto de marcadores que vão reforçar ideias de masculinidade e feminilidade", explica.
Esse processo binário pressupõe, por exemplo, que as pessoas que nascem com um pênis devem se identificar como homens, desejar mulheres e usar o banheiro masculino. Do outro lado, as que nascem com vagina e vulva são do gênero feminino, usam o banheiro correspondente e devem ter desejo sexual por homens.
"Acontece que algumas pessoas não se enquadram nisso que Judith Butler chama de inteligibilidade de gênero, que é a relação linear entre sexo biológico, identidade de gênero e desejo sexual", diz a professora da USP.
Assim, ficam de fora as pessoas intersexo, não-binárias, homossexuais e transexuais, por exemplo.
"Por trás do tema do banheiro, há uma da discussão sobre segregação, um aparthied. É a mesma lógica do bebedouro separado por raça, que hoje seria absurdo. É bom lembrar que havia justificativas até sanitárias para o apartheid racial, de que pessoas negras teriam bactérias diferentes", diz Jaqueline Gomes de Jesus, psicóloga, professora do IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro) e mulher trans.
O que a escola tem a ver com isso?
Em 2015, o pai de um aluno de 4 anos causou polêmica ao dizer para a imprensa que seu filho tinha feito xixi na roupa ao se sentir constrangido de usar o banheiro unissex em uma escola municipal. A retirada das placas de "feminino" e "masculino", disse à época, teria sido uma determinação da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, orientada por uma política de "ideologia de gênero".
A pasta imediatamente respondeu que não havia qualquer recomendação para adoção de banheiros unisex na rede e que tudo não passava de um mal-entendido, já que naquela unidade as placas haviam sido retiradas apenas para a manutenção.
O debate, no entanto, já havia sido instaurado. E muita gente começou a se perguntar: as escolas deveriam ou não adotar banheiros sem gênero?
"É na escola que se espera que comecem a discutir e repensar os estereótipos, mas, na verdade, educação muitas vezes funciona para aparteid de gênero. Isso porque é na escola que as crianças vão aprender o que é roupa de menina e menino, brinquedo e brincadeiras de menino e de menina, as filas são diferentes e o banheiro também", responde Jesus.
Em um boato que se espalha pelas redes sociais, o PSOL é acusado de exigir no STF a transformação de todos os banheiros escolares em unisex. A demanda pelo partido, no entanto, não existe e o vídeo é falso.
Por trás de toda a polêmica em torno do assunto, Amiel Vieira diz que a adoção de banheiros sem gênero é, na verdade, o que já acontece no ambiente doméstico. "É na pré-escola que se introduz a ideia de um banheiro para homens e mulheres, porque em casa ele é o para todo mundo, um espaço de privacidade, que você vai para fazer xixi e cocô, não tem preocupação", diz o sociólogo. "Por um lado, o banheiro de gênero neutro tem a função de livrar a gente de agressões e, ao mesmo tempo, é um retorno à casa".
O banheiro neutro é usado em escolas no Brasil?
Essa já é a realidade de algumas creches e em universidades no Brasil. Em alguns, os próprios alunos pediram a mudança ou a retirada das placas "feminino" e "masculino", para deixar claro que qualquer pessoa, independente do gênero e orientação sexual, é bem-vinda. Em outros, a medida ocorre de forma natural, resultado de um permanente debate sobre diversidade e inclusão.
Foi o que aconteceu no campus Belford Roxo do IFRJ, onde a professora Jaqueline de Jesus trabalha. "Isso foi algo bem tranquilo, sem discussão. Chegamos a colocar uma placa 'banheiro de gente', para mostrar que não havia separação, mas foi só uma brincadeira", afirma. "Eu acho o termo 'unisex' estranho, porque não é sobre sexo, mas sobre necessidades básicas, privacidade, não tem a ver com pênis ou vagina".
Para a professora da USP, o debate em torno do banheiro, na verdade, mostra uma dificuldade de a sociedade de lidar com a pluralidade. Daí a importância de se debater isso na escola. "A possibilidade que nós temos de repensar, enquanto sociedade, essas normas é o por meio da educação. Então, devemos discutir isso na escola porque, primeiro, essas pessoas existem e, segundo, porque essa diferença muitas vezes é tratada de forma violenta", afirma.
Nesse sentido, ela diz, a educação tem um papel importante na formação de pessoas para que tenham valores plurais, onde a diferença seja vista como algo bom, que enriquece, não como uma ameaça.
O que diz quem é contra a medida?
Os principais argumentos para a divisão dos banheiros por gênero são a segurança e a higiene. O primeiro ponto, dizem especialistas, carece de provas, já que não há levantamos que mostrem que banheiros de uso comum aumentem a possibilidade de violência contra as mulheres cis. "Ao contrário, o que as estatísticas mostram é que a casa é o lugar mais inseguro para elas", diz o sociólogo.
"Essa é uma justificativa transfóbica, como se pessoas trans fossem naturalmente violentas", responde a professora do IFRJ.
Há ainda quem diga que os banheiros masculinos são mais sujos e, por isso, seria mais higiênico separá-los das mulheres. Essa saída, no entanto, não soluciona o problema e, especialmente na escola, ignora que também os meninos devem ser ensinados a conservar a limpeza dos espaços de uso comum.
Essa foi a conclusão de um estudo realizado pelas professoras Adla Betsaida Martins Teixeira (UFMG) e Ana Elvira Steinbach Silva Raposo (UFPB), que acompanharam essa discussão em uma creche de Minas Gerais. No texto "Banheiro escolares - Promotores de diferenças de gênero", elas contam como meninas de seis anos reivindicaram a separação dos banheiros, sob o argumento de que os meninos molham o assento do vaso sanitário. O pedido foi atendido pela direção.
"A partir dessa separação, as meninas puderam contar com banheiros mais limpos, exclusivos; contudo, perdeu-se a oportunidade de educar os meninos para o uso adequado do banheiro", afirmam as pesquisadoras.
No artigo "Banheiros, travestis, relações de gênero e diferenças no cotidiano da escola", a professora Elizabete Franco Cruz ouviu diretores e diretoras da rede estadual de São Paulo sobre como lidam com pessoas trans. Em relação aos banheiros, houve os que responderam que essas pessoas deveriam usar os que correspondessem ao seu sexo biológico, as que respeitavam e diziam que cada um deveria usá-lo de acordo com a sua identidade de gênero, os que reivindicavam um terceiro, unisex, e os que permitiam o uso dos espaços dos funcionários.
Na conclusão, a pesquisadora pergunta "afinal em qual banheiro a travesti deve fazer xixi?", e ela mesma responde "eu arriscaria dizer: tem certeza de que esta é a questão?".
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