O que são a educação bancária e a libertadora formuladas por Paulo Freire?
Marcos Candido
De Ecoa, em São Paulo
01/12/2020 04h00
Você discutia o que aprendia na escola? Debatia algum tema? Era estimulado a conversar, encontrar soluções junto com colegas e professores? Ou apenas ouvia a matéria, aprendia fórmulas, respondia questões e ia para casa?
As duas abordagens de ensino foram problematizadas pelo educador Paulo Freire (1921 - 1997) e receberam nomes próprios: o Ensino Bancário e o Ensino Libertador ou Problematizador. É bem capaz que você foi afetado por uma destas abordagens e nem sabe. Mas o que elas significam?
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Para responder, Ecoa convidou Afonso Celso Scocuglia, professor na Universidade Federal da Paraíba, autor do livro "A história das ideias de Paulo Freire e a atual crise de paradigmas" e um dos maiores estudiosos da obra de Paulo Freire no país.
O que é Educação Bancária?
Para Freire, o termo "bancário" significa que o professor vê o aluno como um banco, no qual deposita o conhecimento. Na prática, quer dizer que o aluno é como um cofre vazio em que o professor acrescenta fórmulas, letras e conhecimento científico até "enriquecer" o aluno. Logo após a escola, os alunos "enriquecidos" serão replicadores daquele conhecimento adquirido. É o ensino tradicional que conhecemos no Brasil.
Na visão "bancária" da educação, o "saber" é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber
Paulo Freire em "Pedagogia do oprimido"
O que é Educação Libertadora ou Problematizadora?
A educação libertadora ou problematizadora estimula o aluno a participar ativamente na hora de aprender e principalmente a questionar a realidade. Na prática, o professor promove diálogo, debate e aproxima o mundo teórico do dia a dia dos alunos. É a chamada "educação ativa".
Para Freire, a Educação Problematizadora é uma maneira de estimular os alunos a questionarem o mundo, a pensarem em soluções, a se entenderem como parte de uma sociedade e a não se conformarem com a realidade.
"As pessoas aprendem a raciocinar e a problematizar o que veem na realidade e não assistir sempre a uma coisa que vem do céu, como se elas só assistissem ao mundo ou vendo televisão", diz o pesquisador.
Quais exemplos de Educação Problematizadora?
A Educação Problematizadora não se aplica só a uma disciplina. "É uma abordagem que funciona para qualquer matéria", diz o especialista.
Um exemplo. No lugar de ensinar só uma fórmula da física, o professor estimula o aluno a pensar sobre o que acontece quando o ônibus interrompe o movimento e, de repente, provoca a queda de um passageiro que está em pé. A partir daí, se é ensinado os cálculos para "ler" o que aconteceu no veículo.
"Por exemplo, fazer o aluno pensar sobre a abolição da escravatura. Uma pergunta que pode ser feita: o que aconteceu depois com os negros? Como isso se relaciona com as pessoas negras até hoje?", exemplifica Afonso.
No campo da biologia, os estudantes podem ser estimulados a descobrir o porquê de um pé de feijão cultivado no algodão não ter dado certo. No lugar de oferecer apenas a resposta, o professor pode estimular a classe a investigar em conjunto, apresentar teorias, consultar livros e observar outras plantas até chegar a uma explicação conjunta. "É uma abordagem que chamamos de dialógica", explica o professor.
Quando os dois termos foram apresentados por Paulo Freire?
O educador desenvolveu os termos Educação Bancária e Educação Problematizadora no livro "Pedagogia do Oprimido", de 1968. A obra é uma das mais importantes sobre pedagogia no país e no mundo. Freire estava no exílio no Chile quando concluiu o livro, após a Ditadura Militar o perseguir e o forçar a se exilar. O livro só saiu no Brasil em 1974.
Um estudo de 2016 aponta que "Pedagogia do Oprimido" é a terceira mais citada por pesquisadores em todo o planeta com mais de 70 mil citações, de acordo com a Escola de Economia e Ciência e Política de Londres. De acordo com o projeto Open Syllabus, é a única obra brasileira a configurar a lista de 100 livros mais pedidos por universidades estrangeiras.
A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham (Paulo Freire em "Pedagogia do Oprimido")
Qual é a origem da Educação Bancária?
Segundo o professor Afonso Celso Scocuglia, a Educação Bancária tem origem no método de ensino aplicado pela igreja em períodos medievais e é perpetuada até hoje. "É a abordagem em que um manda, o outro obedece", diz. A Educação Problematizadora de Paulo Freire opõe-se a este tipo de visão.
Qual é a origem da Educação Problematizadora?
Freire tinha uma visão de mundo cristã progressista, que prezava pela solidariedade e libertação dos mais pobres e hostilizados socialmente, diz o professor. No caso, a visão de mundo de Freire era aplicada por meio de uma educação questionadora. Daí o termo Educação Problematizadora, também chamada de Educação Libertadora. Era uma forma de levar em consideração o que o aluno tem a dizer, em qual contexto vive, o que pensa para o futuro para assim quebrar um ciclo de opressão. "A defesa do oprimido de Freire é inspirada nas encíclicas do Papa João 23, que mais tarde influenciou a Teologia da Libertação, com traços do marxismo", diz.
Isso significa que na Educação Problematizadora o aluno pode fazer o que quiser?
Não. Ela é apenas uma forma de abordagem de ensino. A escola pode ter um sistema convencional de avaliação, metas, livros didáticos, notas, grade horária, exigência de presença, reprovação e todo o sistema formal que a gente já conhece. O professor pode falar com a classe, explicar matérias e tirar dúvidas normalmente.
"Freire era contra autoritarismo, não contra a autoridade das escolas e do professor. Não é uma educação frouxa", avalia o especialista. A diferença da Educação Problematizadora é ter o diálogo e a escuta ao aluno no centro, e não somente a punição como um método para ensinar o estudante a se desenvolver.
A Educação Libertadora já foi aplicada formalmente?
Não há uma lei que imponha um ensino a partir de um determinado teórico da educação. A Educação Libertadora ou Problematizadora é um método de abordagem pensada por Freire, não um regramento colocado na prática por uma lei.
Futuros professores podem ter acesso a esta visão durante os estudos na universidade e há escolas que se baseiam ou se inspiram no método freiriano de ensino. Apesar disso, não há uma regra institucional que imponha o ensino da Educação Problematizadora ou Bancária nas escolas do país. "Muitos professores usam abordagens por vezes sem nem saber que a origem é em Paulo Freire", diz o professor.
Quem foi Paulo Freire?
Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921 no Recife. Formou-se em direito pela Universidade do Recife, hoje chamada Universidade Federal de Pernambuco. O educador nunca foi advogado e sempre se dedicou à filosofia e à pedagogia. Foi diretor do setor de educação e cultura do Sesi (Serviço Social da Indústria) no fim da década de 40 e foi diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social em Pernambuco. Dedicou parte de seu trabalho à alfabetização de analfabetos pobres. Em 1964, Paulo Freire foi nomeado pelo governo federal para chefiar o Programa Nacional de Alfabetização (PNA). A ideia era criar um programa só para todo o país e alfabetizar 1,8 milhão de adultos, ou 8,9% da população analfabeta entre 15 a 45 anos. À época, 20,442 milhões de brasileiros eram analfabetos.
Freire foi preso com o golpe que instaurou a Ditadura Militar. O programa de alfabetização foi extinto, Freire foi preso por 70 dias e ficou no exílio até 1980. Ao retornar, deu aula na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e PUC-SP, onde foi orientador de nomes como o filósofo Mario Sergio Cortella.
Em 1989, foi secretário municipal de educação de São Paulo, no governo da prefeita Luiza Erundina, então no Partido dos Trabalhadores (PT). Em 2012, a Câmara dos Deputados de Brasília o nomeou como patrono da educação brasileira. Em maio de 1997, Freire morreu vítima de um infarto do miocárdio. Sua última obra, lançada um mês antes, foi "Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa". Foi um dos maiores nomes na área da educação em todo o mundo.