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Por que perguntas feitas a Maluf no Roda Viva de 1995 causam choque hoje?

Paulo Maluf em entrevista ao Roda Viva em outubro de 1995 - Reprodução
Paulo Maluf em entrevista ao Roda Viva em outubro de 1995 Imagem: Reprodução

Matheus Pichonelli

Colaboração para Ecoa, de Campinas (SP)

05/12/2020 04h00

"E o Maluf que proibiu fumar em restaurante e transformou o Roda Viva em um grande episódio do Choque de Cultura?"

Acompanhado pelo trecho de uma entrevista de 1995 do então prefeito de São Paulo ao tradicional programa da TV Cultura, o tuíte publicado pelo perfil @esquerdasempaixao teve 2,1 milhões de visualizações e mais de 26 mil retuítes em poucas horas.

Os motivos eram o espanto com a postura de Maluf, um ícone do conservadorismo paulistano, diante dos entrevistadores, entre eles o apresentador do programa, Matinas Suzuki Jr —que 25 anos depois admitiu, ao jornal "O Globo", que Maluf, ao menos naquele encontro, tinha toda razão. Ali, Maluf era o progressista e os entrevistadores, os reacionários. Ninguém queria saber de mudanças na lei que, até então, permitia compartilhar em paz as fumaças dos cigarros nos olhos e nas narinas dos chamados fumantes passivos. Um dos jornalistas convidados se queixou também de ser obrigado a usar cinto de segurança em seu veículo.

"O direito de você se suicidar não te dá o direito de assassinar seu vizinho", respondeu Maluf.

As perguntas causam estranhamento à luz dos dias atuais, mas não estão muito longe dos questionamentos recentes sobre a obrigatoriedade do uso de máscaras na pandemia do novo coronavírus ou mesmo das restrições da lei de trânsito — alvos frequentes do governo Bolsonaro.

Para além do caráter anedótico, o vídeo é uma demonstração de como são confusas as fronteiras entre o que se compreende como liberdade individual e direitos coletivos — uma discussão que bate no fundo na história da nossa formação social.

Segundo a professora do Departamento de Antropologia da UnB Soraya Fleischer, as repercussões sanitárias de um direito privado que se quer prevalecer sobre o coletivo, como o caso do cigarro, provoca um dano gigantesco em termos de adoecimento, morte e sequelas, além do comprometimento financeiro do sistema público de saúde. No caso do coronavírus e da gritaria contra uso de máscaras e restrições de circulação, ela diz ser complicado pensar em indivíduo e sociedade num momento epidêmico.

"Essas decisões 'se eu fumo ou não', 'se eu uso cinto de segurança ou não, 'se eu uso máscara ou não' é muito incentivado num quadro político, institucional e econômico mais neoliberal que valoriza as decisões individuais e elege esse indivíduo, cada vez mais empoderado, como responsável por uma série de coisas que estão na alçada do Estado. Para a empresa é muito mais interessante ter que arcar com demandas individuais de alguém que percebe a relação entre o câncer de pulmão e o cigarro da pessoa que fumou a vida toda do que, por exemplo, uma população inteira ir contra uma indústria. A individualização dos pleitos, das queixas, é muito mais interessante do que a coletivização delas", afirma.

Fleischer diz que a discussão sobre indivíduo e sociedade perpassa a década de 1990 e chega até os dias atuais. Na área da saúde, ela destaca os estudos do sociólogo inglês Nikolas Rose sobre o chamado ativismo do paciente, cada vez mais informado da sua condição —o que, por essa lógica econômica, torna-se ponto-chave para desonerar o papel do Estado na oferta de serviços públicos.

"O direito privado ganha cada vez mais espaço. Não tem problema algum a pessoa fumar em sua casa. O problema é quando vai para uma área pública. O que o Maluf diz é que seu direito privado está invadindo um direito público. As perguntas dos jornalistas são um pouco chocantes à luz dos dias de hoje porque estão tensionando o Maluf pensando que ele está legislando demais, como gestor público, no direito privado, no comportamento privado."

Para a especialista, o vídeo deixa entrever um gestor preocupado com o impacto do tabagismo no sistema de saúde, algo similar à preocupação com os acidentes de trânsito. "O gestor também está preocupado com esse motorista que não usa cinto, se envolve em um acidente, se machuca gravemente, e vai depois onerar um hospital de alta complexidade, de politraumatismo. Ele está preocupado com os custos desse acidentado. Ou dos outros acidentados que se envolvam involuntariamente com o motorista que não usou o cinto."

Segundo a antropóloga, há uma série de comportamentos que não são nem podem ser considerados de foro íntimo quando se pensa neste direito coletivo. O cigarro, o cinto de segurança e, agora, a máscara e a vacina são exemplos disso. "O não cumprir um estabelecido, um combinado coletivo em relação a essas três coisas tem impactos para além da sua vida, para além do indivíduo que não quer seguir essa regra porque ele está no coletivo. Queremos nos manter absolutamente soberanos como indivíduos sobre esse coletivo. É uma discussão que parece boba, e imagino que muitas pessoas que não querem usar máscara devam adjetivar essa discussão como 'mimimi', mas é uma discussão de fundo que reverbera estruturalmente na história da nossa sociedade."

Em outra perspectiva, o vídeo foi observado como uma grande reunião do que, na linguagem informal, se convencionou a chamar de "omis fazendo omices". "É como nós feministas, em conversas privadas e também na internet, geralmente nos referimos jocosamente às ações patentes de explícito privilégio masculino", explica Joanna Burigo, mestre em gênero, mídia e cultura pela London School of Economics.

O episódio foi visto como exemplo de como o privilégio do homem branco opera, já que os entrevistadores se incomodam e reagem ao ver um privilégio em risco — uma postura que passou a ser mais questionada apenas nos últimos anos. "Essa expressão do privilégio é poder ter esse tipo de pensamento [demonstrado no Roda Viva]. Ninguém além dessa categoria acha que pode qualquer coisa. A não ser que seja um sociopata", diz.

Para ela, a conversa e a "controvérsia" são mais velhas do que o vídeo. "Me parece haver um eterno retorno a essa dicotomia burra entre liberdades individuais e direitos coletivos, sempre com a turma da defesa das liberdades individuais falhando em ver que a regulamentação destas liberdades individuais é sobre direitos coletivos. O fato de ser o Maluf a fritar um suposto bando de progressistas com isso é divertidíssimo."

Sobre as semelhanças com as discussões atuais, Burigo diz que esse "eterno retorno" se revela também em pseudo-conflito. "Digo pseudo por não ser um conflito de fato, e é aí que a questão da masculinidade cis importa, mas por ser um levantado, criado, proposto, defendido a partir de pouco além 'entitlement', quer dizer, de um pensar ter o direito de fazer ou ter o que quiser apenas por ser quem se é. Este é o verdadeiro mimimi."