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Pedagogia griô une saberes ancestrais e formais para formar professores

Garota participa de oficina de contação de histórias da organização Grãos de Luz e Griô, na cidade de Lençóis, na Chapada Diamantina (BA) - Inês Calixto/Folhapress
Garota participa de oficina de contação de histórias da organização Grãos de Luz e Griô, na cidade de Lençóis, na Chapada Diamantina (BA) Imagem: Inês Calixto/Folhapress

Paula Rodrigues

De Ecoa, em São Paulo

06/12/2020 04h00

Na África Ocidental, griôs são pessoas que têm o poder da oralidade. Absorvem histórias e as contavam pelas comunidades para manter viva as tradições de um povo. Em Lençóis, na Chapada Diamantina (BA), eles desempenham o mesmo papel e estão representados em figuras como capoeiristas, benzedeiras, repentistas, jongueiros e tantos outros. São agentes de cultura que mantém pulsantes os saberes elaborados especialmente por negros e indígenas. Desde 1996, essa tem sido a premissa do ponto de cultura e ONG Grãos de Luz e Griô: valorizar os conhecimentos produzidos por esses mestres, os associando à figura do griô ancestral africano.

Ligando esse ponto ao conhecimento já estruturado de escolas tidas como "tradicionais", os educadores Lilian Pacheco e Marcio Caires criaram a organização e posteriormente a escola de formação para professores para espalhar o entendimento de que a Educação se transforma quando não há hierarquias de conhecimento.

"Queríamos fazer uma pedagogia, uma educação que tivesse um parto mítico da nossa identidade e ancestralidade como povo brasileiro, e é isso que a gente vislumbra. Começamos a caminhar pela comunidade e reaprender. reaprender para poder ensinar de novo. As comunidades indígenas, de assentamento. Por isso, trouxemos a figura do griô, que vem da simbologia africana que não era tão falada aqui no Brasil quando começamos em 1996", conta Lilian.

A raízes da Pedagogia Griô

A primeira sala de aula da educadora Lilian Pacheco foi na casa em que morava em Jacobina, na Chapada Diamantina (BA). Intercalava o corre-corre da infância com a brincadeira preferida: imaginar uma escolinha no quintal. Passava horas ali dando aulas imaginárias como professora. A mãe, que era professora da rede pública da cidade, ao assistir o interesse da filha por educação, passou a levá-la para o trabalho quando a menina tinha oito anos. Não ajudava a mãe, mais do que isso, dava aula no lugar dela. Nasceu educadora, como ela diz.

Quando o pai decidiu que era hora de levar a família para Salvador, no intuito de dar mais oportunidade de estudo para a filha, a história se repetiu: na escola católica, assumia turmas e mais turmas.

O padre do colégio acabou virando uma espécie de mentor para ela. Ao ver o interesse da adolescente à época, a deixou responsável por ensinar uma turma que estava em recuperação.

Quando chegou a hora de fazer faculdade, não hesitou em consultá-lo sobre o quê deveria estudar. Lilian queria fazer algo entre Educação ou Pedagogia, já que sempre foi apaixonada por dar aula. "Eu dava aula em periferias de Salvador, minha grande paixão é conseguir misturar educação com projetos sociais", conta. No entanto, o padre a pegou desprevenida quando disse a ela: "irmãzinha, acho que você não deveria fazer nada disso na faculdade". Por que? "Porque vai estragar tudo. Vai fazer algo que te dá dinheiro para você poder ficar tranquila para fazer o que você realmente gosta. Assim você vai poder fazer Educação do jeito que você acredita", respondeu.

O argumento do sacerdote era de que na universidade Lilian não encontraria o fazer Educação no que ela acreditava (e ainda acredita). À época, o Brasil estava há 18 anos vivendo uma ditadura militar, os currículos acadêmicos eram outros. Mesmo assim, decidiu tentar. Prestou para Direito e Matemática, passou nos dois cursos, mas quis fazer o último.

O primeiro dia na universidade foi também o último. Em determinado momento, enquanto ouvia o professor falar, levantou-se e caminhou até a porta. "Ei, mocinha, quem disse que você pode levantar e sair da minha aula?", o professor a questionou.

"Não, professor, eu estou saindo é da faculdade", foi a retórica de uma jovem Lilian. Hoje, ela explica: "Eu era apaixonada por Matemática e não via essa mesma paixão em quem ensinava. Fora que os currículos e a metodologia eram horríveis."

Foi fora do meio acadêmico que encontrou seu caminho. Começou a se dedicar a cursos, especialmente de educação popular e deu início ao que viria a ser a metodologia que ela imaginava ser possível colocar na prática.

Como funciona a pedagogia griô

A pedagogia griô que Lilian estruturou é, na verdade, o resultado de anos de prática da metodologia que ela e o marido Márcio Caires utilizam na Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô.

No livro "Pedagogia Griô - A reinvenção da Roda da Vida", ela a define da seguinte forma: "É uma pedagogia da vivência afetiva e cultural que facilita o diálogo entre as idades, entre a escola e a comunidade, entre grupos étnicos-raciais interagindo saberes ancestrais de tradição oral e as ciências formais para a elaboração do conhecimento e de um projeto de vida que têm como foco o fortalecimento da identidade e a celebração da vida."

Tem origem em 1996 quando ela e Márcio, que também estava em Salvador, decidem voltar para a Chapada. Os dois sempre quiseram retornar para poder se reconectar com a ancestralidade. Voltaram para estudar educação com a oralidade de quilombolas e indígenas da região, especialmente os do povo Payayá, que antes da colonização ocupavam cerca de 300 mil km² na Bahia, sendo boa parte na Chapada Diamantina, mas foram praticamente todos mortos. Lilian conta que além dos poucos que sobraram, muitos não se reconhecem como tal, como no caso de sua família materna.

Passaram, então, a caminhar de comunidade em comunidade ouvindo principalmente os mais velhos. Boa parte dos que falaram não tinha a escrita como ferramenta de elaboração de saberes, mas dominavam a oralidade. Unindo essa escuta atenta para os saberes ancestrais com os conhecimentos formais tem-se a base da pedagogia griô.

Temos diversos conteúdo sistematizados no mundo oral, assim como temos na escrita. E aqui interagimos nos dois. Não existe hierarquia, existe interação problematizadora. Então, falamos de, por exemplo, vários saberes de ervas tradicionais de alguma mestra, de uma parteira, por exemplo, mas também tratamos de saberes encontrados em livros sobre o assunto. A vontade era de fazer uma escola que integrasse a tradição com educação formal. Mas olhando para essa ancestralidade como ciência mesmo. A ciência é um campo de disputa e nós estamos nele.

Lilian Pacheco, educadora

Caminhos de aprendizagem

Em 2016, quando abriu a escola de formação da pedagogia griô para professores em Lençóis, a ideia era auxiliar profissionais da Educação a assimilar os conhecimentos ancestrais em sala de aula pelo país de forma séria, não tratando como folclore ou um conteúdo inferior. Porque, para ela "se tivéssemos na Educação diversos tipos de aprendizagem, diversas reeducações, estaríamos muito mais conectados e conectadas a outro mundo possível". Mas desde 1998 o curso já era dado.

A formação tem duração de 200 horas, distribuídas em 13 encontros que ocorrem em um final de semana de cada mês. Na primeira aula, é apresentado o que é a pedagogia griô. A última, termina com um encontro de imersão sobre cidadania e políticas públicas ligadas à tradição oral.

Para isso, Lilian criou um caminho pedagógico novo sustentado em quatro pilares. "Demos o nome de caminho do encantamento, da vivência, do diálogo e da produção partilhada do conhecimento. Com esse caminho didático a gente facilita aulas, que, na verdade, chamamos de 'rituais de vínculos e aprendizagem' para que a pessoa consiga elaborar conhecimento dentro de outros caminhos, sem ser esse que estamos acostumado a ver, que é impositivo e conservador."

No encantamento, são trabalhadas práticas pensadas na corporeidade dos indivíduos que se reúnem em uma roda para que todos possamos e enxergar e a mesma oportunidade de se expressar, e não apenas um professor que fica na frente da sala com alunos sentados de costas uns para os outros. "São várias práticas com o corpo e a emoção que a gente cria para que a pessoa de fato incorpore o desejo do aprender, o processo do conhecimento," diz a educadora.

A vivência vem em seguida. É onde Lilian estimula os docentes a trabalhar com o que ela chama de "digestão do processo de elaboração do conhecimento". Na prática, é quando o corpo se expressa com movimento, com dança, canto, musicalidade e contação de histórias.

"Depois vem a palavra, o diálogo. Após vivenciar, trabalhamos as práticas dialógicas, em grupo trabalhamos na mediação do diálogo. E por último, partilhamos o conhecimento, que é você testar na realidade, criar atividades materiais na realidade que a transforma."

Ação griô nacional

Quando se inscreveram para o edital Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, em 2006, queriam o reconhecimento da ONG Grãos de Luz e Griô como ponto de cultura. E conseguiram: a organização foi a quinta no Brasil a ganhar o título. Mas o projeto acabou despertando o interesse do órgão federal, que chegou a visitá-los em Lençóis para entender como se desenvolvia o processo de aprendizagem pela pedagogia griô.

Assim, foi proposto algo grandioso: tornar a metodologia em uma ação nacional. Lilian ficou incumbida de escrever o projeto, que foi aprovado. "Eu e Marcio começamos a implementar, coordenar depois. Primeiro fomos chamados para ser consultores do Ministério da Cultura lá em Brasília e eu não aceitei. Eu sou interiorana e vou continuar sendo até o resto da minha vida. Falei que se eles quisessem, nos coordenaríamos a ação aqui da Chapada porque o centro do Brasil não pode ser só Brasília", conta.

Assim, entre 2006 e 2011, Lilian e Marcio passaram um bom tempo na estrada, rodando o Brasil para ter encontros com educadores interessados em aplicar a metodologia desenvolvida por eles em escolas. Ao todo, foram 600 instituições de ensino, envolvendo cerca de 100 mil estudantes de escolas públicas e 750 pessoas de saberes orais, que eles chamam de mestre griô.

Fizemos uma grande movimentação no Brasil para ter o reconhecimento dessas pessoas como sábios da tradição oral. Qual era e ainda é a nossa questão: Por que referenciar essas pessoas como analfabetas só porque elas não têm a escrita? A gente não pode fazer isso. Isso é definir uma pessoa pelo não, pelo que ela não tem e por uma referência hegemônica. Nossa luta foi por reconhecê-las pelo potencial que cada uma carrega. O programa nacional junto foi para isso também: reconhecer o lugar político, social e econômico delas. E falamos em econômico também porque acontece muito de chamarem essas pessoas para certos lugares, para dar palestras, aulas, por exemplo, e acharem que é de graça porque são analfabetos, mas essas pessoas carregam os saberes orais. São grandes maestrias e saberes.

Lilian Pacheco, educadora

Outro fruto dessa articulação foi conseguir reunir cerca de um milhão de assinaturas que apresentaram para criar o projeto de lei 1.786/2011 que tramita no Congresso para criar a Lei Griô, responsável por transformar em política nacional a inclusão de saberes tradicionais "em diálogo com a educação formal, para promover o fortalecimento da identidade e ancestralidade do povo brasileiro."