Educação sexual deve estar no currículo, mas não substitui papel da família
Marcelle Souza
Colaboração para Ecoa, de São Paulo
10/12/2020 04h00
A educação sexual deve fazer parte do currículo das escolas brasileiras e é uma forma de prevenir ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e gravidez precoce, identificar violências e promover o respeito dos alunos com o seu próprio corpo e com o restante da comunidade escolar. Apesar de muitas vezes surgir como um tema polêmico, trata-se de uma discussão com previsão legal e que não visa substituir ou violar os valores das famílias.
Nos últimos meses, as polêmicas em torno do assunto têm sido protagonizadas pelo próprio governo federal. Em abril deste ano, por exemplo, o presidente Jair Bolsonaro criticou a OMS (Organização Mundial da Saúde) por supostamente incentivar a masturbação e a homossexualidade em crianças, o que não é verdade. O comentário foi feito em seu perfil no Twitter e, em seguida, foi apagado.
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Ele fazia referência, de forma distorcida, a um documento publicado em 2010 e voltado para autoridades, especialistas e profissionais de escolas e serviços de saúde sobre programas de educação sexual na Europa. O texto defendia "uma interpretação positiva da sexualidade", considerando-a parte natural do desenvolvimento humano e discutindo como lidar com o tema em cada faixa etária.
Ecoa reuniu perguntas comuns sobre o tema e falou com especialistas para explicar quais são as verdades e as lendas sobre a educação sexual nas escolas.
A educação sexual está prevista na lei?
"Sinto que deixamos a educação sexual um pouco de lado, algo que devemos fazer por lei, mas que não é discutido na escola", afirma Jaqueline Gomes de Jesus, psicóloga e professora do IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro). "Muitos adultos não falam sobre o assunto por vergonha, porque se formaram em uma cultura que vê o sexo como algo feio, que só descobrem a partir das primeiras relações sexuais".
"Penso que tivemos uma regressão grande nos últimos anos, desde a Lei de Diretrizes e Bases [de 1996], quando se compreendia a educação como fundamental, que precisamos educar crianças e adolescentes para que entendam seu corpo e sua sexualidade. Precisamos tratar desses temas, mas infelizmente ainda existe resistência dos próprios professores", diz a pesquisadora e historiadora Vanessa Cavalcanti, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Educação e Direitos Humanos da Universidade Católica de Salvador.
Educação sexual aumenta a atividade sexual na adolescência?
Em um parecer publicado em junho deste ano, a Comissão Nacional Especializada de Sexologia da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) e da SBRASH (Associação Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana) defendeu a educação sexual nas escolas como um processo que visa propiciar "conhecimentos, habilidades e valores que capacitem os jovens a fazer escolhas conscientes e responsáveis sobre suas vivências sexuais".
O texto também destaca que discutir o tema não aumenta a atividade sexual na adolescência, não estimula o comportamento sexual de risco e não aumenta risco para ISTs. Ao contrário, os especialistas dizem que a educação sexual "contribui para postergar a iniciação sexual e reduzir o número de parceiros sexuais, sendo também efetiva para aumentar o uso de preservativos e de métodos contraceptivos".
Educação sexual diminui as ISTS e infecções por HIV?
Um estudo realizado pela Unesco na Estônia e publicado em 2011 estima que o programa de educação sexual evitou, entre 2001 e 2009, 4.280 gestações indesejadas, 7.240 ISTs e 1.970 infecções por HIV. Nesse país, o custo para os cofres públicos do tratamento por pessoa com HIV é de 67.825 dólares (aproximadamente R$ 370 mil) ao longo da vida.
Educação sexual está no currículo das escolas?
No Brasil, o tema faz parte dos Parâmetros Curriculares Nacionais, uma coletânea de documentos publicada em 1997 como complemento à LDB, que serve de referência para os currículos das escolas em todo o Brasil. Neles, há sugestões de abordagens e objetivos para cada disciplina obrigatória, como português e matemática, mas também para os temas transversais discutidos por várias matérias em sala de aula.
É correto falar sobre "orientação sexual" nas escolas?
Entre os volumes publicados à época e válidos até hoje, está o intitulado "orientação sexual", que reconhece que as manifestações de sexualidade afloram em todas as faixas etárias e que, em lugar de apenas reprimir ou ignorá-las, a escola deve desenvolver uma ação crítica, reflexiva e educativa sobre o tema.
"A escola, ao propiciar informações atualizadas do ponto de vista científico e explicitar os diversos valores associados à sexualidade e aos comportamentos sexuais existentes na sociedade, possibilita ao aluno desenvolver atitudes coerentes com os valores que ele próprio elegeu como seus", diz o texto.
É importante lembrar que o Ministério da Educação alterou, em 2017, a última versão da Base Nacional Comum Curricular, retirando todas as menções às expressões "identidade de gênero" e "orientação sexual" do texto. A alteração, no entanto, não invalida as diretrizes dos Parâmetros Curriculares.
Desse modo, a professora Vanessa Cavalcanti defende o papel do Estado laico na educação, que deve primar pela igualdade sem discriminação, em um currículo pensado para além de discursos morais e religiosos. "Vale frisar: a educação deve ser eixo de Estado e não de governos, oferecendo e ampliando conhecimentos e saberes, numa promoção de e para os direitos humanos como instrumento de vidas possíveis, não a intolerâncias, racismos, sexismos e LGBTfobias", diz.
Educação sexual substitui os valores da família?
Segundo os parâmetros curriculares, a educação sexual nas escolas não tem o papel de substituir, competir ou julgar como certos ou errados os valores transmitidos pela família. Isso porque, todas elas, mesmo que não falem abertamente sobre o assunto, educam crianças e adolescentes para a sexualidade.
"De forma diferente, cabe à escola abordar os diversos pontos de vista, valores e crenças existentes na sociedade para auxiliar o aluno a encontrar um ponto de auto-referência por meio da reflexão. Nesse sentido, o trabalho realizado pela escola, denominado aqui de Orientação Sexual, não substitui nem concorre com a função da família, mas antes a complementa", diz o documento nacional.
Isso é importante porque, em qualquer idade os alunos estão expostos a vídeos da internet, programas de TV e rádio, livros, filmes e outros produtos culturais que muitas vezes não são adequados à sua idade. Esse volume de informação pode gerar curiosidade, dúvidas e fazer com que crianças e adolescentes associem a sexualidade a noções distorcidas, incorretas ou discriminatórias.
A escola, portanto, deve ajudar a aluno a pensar criticamente e saber selecionar as informações confiáveis e com embasamento científico, pensar a sexualidade não apenas de forma individual, mas contextualizá-la social e culturalmente.
Aulas de educação sexual resumem-se à biologia?
Aos educadores, os parâmetros curriculares recomendam estabelecer uma relação de confiança com os alunos, mostrando-se disponível para dúvidas e conversas, sem emitir juízo de valor, respondendo às questões de forma respeitosa, clara e direta.
"A linguagem não sexista, de promoção da igualdade, do respeito e da dignidade pode ser valorizada desde as primeiras experiências escolares, não criando estereótipos, intolerâncias, discriminações e papéis definidos para meninos e meninas. Isso amplia-se para incorporar diversidade social, étnico,de sexo, gênero e sexualidades, escolhas religiosas", diz Vanessa Cavalcanti. Trata-se, portanto, de proporcionar um espaço plural e amigável para discutir o tema a partir de bases científicas.
Educação sexual nas escolas pode ajudar no combate à pedofilia à violência sexual?
Nesses momentos de acolhimento, os profissionais da educação podem, inclusive, identificar casos de violência ou que necessitem de acompanhamento individualizado. Pesquisadores apontam, inclusive, que a educação sexual pode salvar crianças de casos de pedofilia.
Qual a idade correta para iniciarem-se as aulas de educação sexual?
Os PCN não sugerem uma abordagem específica, mas afirmam que, a partir da quinta série do ensino fundamental, com a vivência da puberdade, os alunos começam a trazer para a escola pontos e dúvidas sobre sexualidade e o corpo. Segundo os documentos, nessa idade eles apresentam "necessidade e melhores condições de refletir sobre temáticas como aborto, virgindade, homossexualidade, pornografia, prostituição e outras".
"A educação para a sexualidade deve ser voltada para a pluralidade e poderia estar em todas os níveis, da educação infantil até a universidade, desde que a conversa seja adequada para cada faixa etária e incorporada aos projetos pedagógicos da escola. Para isso, antes é preciso investir na formação de professores e professoras", explica a psicóloga Elizabete Franco Cruz, professora da EACH-USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo).
No ensino médio, o documento assinala que um conhecimento maior sobre seu próprio corpo pode contribuir para a formação da auto-estima, para o desenvolvimento de comportamentos de respeito ao próprio corpo e aos dos outros e "para a compreensão da sexualidade humana sem preconceitos".
Para os especialistas ouvidos pelo Ecoa, educação sexual pode ser ensinada de maneira transversal, tanto dentro dos conteúdos formais quanto em atividades extracurriculares, integrando distintas áreas do conhecimento. Isso significa que o tema não cabe apenas nas aulas de biologia, onde normalmente aprendemos sobre os órgãos reprodutivos masculino e feminino, mas também está ligado à antropologia, história, literatura e psicologia, por exemplo.
"Essa abordagem normalmente não abarca as ansiedades e curiosidades das crianças, pois enfoca apenas o corpo biológico e não inclui as dimensões culturais, afetivas e sociais contidas nesse mesmo corpo", diz o documento.
Educação sexual pode combater o preconceito?
Sociólogo e doutorando na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Amiel Vieira fala que, além disso, a escola deve ser espaço para discutir, sem preconceitos ou tabus, a existência de outros corpos e outras sexualidades, que não sejam os binários homem e mulher, pênis e vulva.
"A escola tem que ser o lugar da pluralidade, de se falar da educação sexual de forma ampliada, dos que são 'invisíveis', como nós, pessoas intersexos. Somos 2% da população mundial e não queremos aparecer só nas aulas de biologia, na aula sobre síndromes", diz Vieira, que é também presidente da Abrai (Associação Brasileira de Intersexos).
Ao discutir os temas de forma aberta e franca, mediado pela ciência, ele defende ainda que esse seja um momento para refletir como a cultura interfere na forma com que os sujeitos vivenciam a sua sexualidade. "É preciso tratar não só de doenças e problemas, mas discutir que sexo também é prazer", diz.