Topo

A educação domiciliar, ou homeschooling, deve ser liberada no Brasil?

Homeschooling - Retrato de pai e filho estudando com laptop em uma aula online em casa - iStock
Homeschooling - Retrato de pai e filho estudando com laptop em uma aula online em casa Imagem: iStock

Rayane Moura

COLABORAÇÃO PARA ECOA, DE SÃO PAULO

17/12/2020 04h00

O homeschooling ou, em bom português, educação domiciliar, é o formato de ensino feito em casa. Com isso, os alunos substituem a frequência constante à escola pela educação doméstica, onde as aulas são lecionadas nas próprias residências pelos genitores ou por professores particulares contratados. Assim, a responsabilidade pela educação formal dos filhos é atribuída apenas aos pais ou responsáveis.

No Brasil, a prática do homeschooling acaba de ser liberada no Distrito Federal. Na última quarta (16), o governador Ibaneis Rocha (MDB) sancionou a lei que institui o homeschooling em Brasília. A lei vale a partir de fevereiro de 2021.

No resto do país, o ensino domiciliar não é permitido por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que, em setembro de 2018, entendeu não haver uma lei que regulamente o ensino domiciliar no país. Embora a lei não proíba explicitamente a prática, ela também não a respalda. De acordo com a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases Educacionais (LDB), a educação é "dever do Estado e da família". A LDB ainda coloca como dever dos pais ou responsáveis "efetuar a matrícula das crianças na Educação Básica a partir dos quatro anos de idade".

Pelo fato do ensino domiciliar não ser tratado explicitamente na legislação, é possível recorrer na justiça para conseguir autorização para educar em casa. Porém, a decisão cabe à interpretação da justiça, e nem todas as famílias conseguem a garantia da prática. Aproveitando essa brecha, 7.500 mil famílias brasileiras praticam o homeschooling, de acordo com estimativa da Associação Nacional De Educação Domiciliar (Aned) em pesquisa realizada em fevereiro de 2016. Os dados apontam também que cerca de 15.000 estudantes entre 4 e 17 anos fazem parte da educação doméstica no Brasil.

Essa forma de ensino não é nova e ressurgiu nos Estados Unidos na década de 1970. Ela é legalmente permitida em 63 países, onde a maioria exige uma avaliação anual dos alunos que recebem essa forma de educação. Já na Alemanha e Suécia, por outro lado, a educação domiciliar é considerada crime.

A regulamentação da educação domiciliar estava entre as metas prioritárias do governo Bolsonaro para os 100 primeiros dias de gestão. Em 2019, o atual governo disse que enviaria uma Medida Provisória ao Congresso para tratar o tema, mas acabou encaminhando uma proposta de projeto de lei que visa criar regras para quem prefere educar os filhos em casa. A proposta não avançou na Câmara.

Com a pandemia do coronavírus, as aulas presenciais foram suspensas e se tornaram totalmente remotas e a distância. Por isso, diversas famílias estão conduzindo mais ativamente as atividades escolares de seus filhos de dentro de casa, cenário próximo do homeschooling, o que levantou o interesse pelo ensino doméstico.

Conheça quais são os argumentos favoráveis e contra o modelo, de acordo com os especialistas:

SIM

Insatisfação do ensino no Brasil

Um dos principais argumentos dos que defendem o homeschooling seria a baixa qualidade de ensino no país. Segundo dados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), o Brasil aparece entre as 20 piores colocações no ranking das três áreas acompanhadas pelo exame: matemática, ciências e leitura.

Por isso, os pais optariam por tirar seus filhos das escolas tradicionais e oferecer um ensino diferenciado sem sair de casa. Para os defensores da prática, os responsáveis pelas crianças desenvolveriam uma educação personalizada que focaria em explorar o potencial, talentos e preferências de cada criança e adolescente.

Não é necessário avaliações ou provas

O homeschooling não foca em provas ou avaliações como as escolas tradicionais. Segundo os praticantes brasileiros, a metodologia foca em ensinar no tempo de cada um, sem nenhum tipo de pressão para aprender.

A metodologia do ensino domiciliar teria o poder de ensinar conforme o ritmo e o estilo de aprendizado do aluno, proporcionando maior amadurecimento, desenvolvendo a disciplina de estudo e o gosto pelo aprendizado e favorecendo o empreendedorismo.

Maior aprendizado

As escolas tradicionais têm em média de 25 a 30 alunos por classe para um único professor, com isso se torna difícil deixar todos os outros de lado para resolver as necessidades específicas de cada um.

Com o homeschooling focando em um aprendizado mais personalizado, não se perde a concentração, a criança recebe mais atenção individualizada e pode tirar suas dúvidas, direcionar a matéria e interagir de forma plena.

No homeschooling, as crianças e adolescentes socializam normalmente com amigos, parentes e vizinhos. Frequentam parques, praças, parquinhos, clubes, bibliotecas, praticam esportes; além de participarem de grupos de apoio, que são grupos de famílias que praticam a educação domiciliar e se reúnem para interagirem entre si.

Segurança e Conforto

Uma das principais preocupações dos pais e responsáveis é a segurança de seus filhos dentro das instituições de ensino. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva e do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP) indica que cinco em cada dez professores da rede já sofreram algum tipo de violência nas dependências das escolas em que lecionam. Entre estudantes, 37% declararam ter sofrido algum tipo de violência.

Com o homeschooling, por estarem dentro de casa, os pais sentem que as crianças estão mais seguras e confortáveis.

Ideologias políticas e religiosas

Uma das principais reclamações dos pais defensores do ensino domiciliar é a teoria (não comprovada) de que existiria uma doutrinação ideológica por parte dos professores. A história contada do ponto de vista de um determinado partido ou posição política, por exemplo, moldaria a mente dos seus filhos, em fase de desenvolvimento.

Com a educação domiciliar, esses pais ensinariam seus próprios valores, posicionamentos políticos e morais, sem abertura para influências externas.

NÃO

Ausência de formação adequada

Os pais e responsáveis que são adeptos ao homeschooling não são necessariamente treinados e qualificados para o ensino. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), é necessário formação mínima para o exercício do magistério.

Segundo o artigo 62 da LDB: "A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade normal".

Pais e responsáveis, muitas vezes, não têm experiência em primeira mão com a educação domiciliar, além de não terem pleno conhecimento sobre os diversos assuntos que as crianças e adolescentes devem aprender durante sua formação. Isso impede que os alunos recebam uma educação de qualidade, que os professores treinados e capacitados podem oferecer em escolas tradicionais.

Além disso, os pais privam as crianças de aprender uma diversidade de assuntos. Com o homeschooling, acontece uma limitação da aquisição de conhecimentos e da visão de mundo das crianças, com isso muitos assuntos como raça, religião e gênero podem deixar de serem pautados. Vale destacar também que, ninguém é capaz de aprender em casa tudo o que se aprende na escola.

Falta de socialização

Uma das grandes preocupações é a falta de convívio social com outros alunos da mesma idade. Por serem educadas em casa, as crianças são privadas de viver com outras crianças.

Isoladas, essas crianças deixam o convívio em sociedade, fator importante para o desenvolvimento intelectual e social dos indivíduos. É necessário que o aluno passe por conflitos, situações diferentes e divergentes do que está acostumado. No homeschooling, onde a convivência entre pais e filhos só se intensifica, dificilmente uma criança diverge de seus pais, pois ela os enxerga como autoridade absoluta, o que fará com que dificilmente haja a contraposição de ideias.

Para que um pensamento científico se desenvolva, é necessário que a criança lide com outros pontos de vista, e reconheça situações diferentes daquilo que ela acredita ser verdade. Um dos cernes do Estatuto da Criança e do Adolescente é a garantia do direito à educação e ao convívio familiar e comunitário.

Dificuldade de identificação de abusos

Os defensores do homeschooling apontam a família como um lugar de proteção e seguranças para as crianças e adolescentes. Mas nem todas as famílias realmente as protegem, e algumas das vezes sofrem diversos abusos físicos, psicológicos e até sexuais, dentro de suas próprias casas.

Com o ensino doméstico, as crianças passam mais tempo dentro de casa e essas situações se tornam difíceis de serem detectadas, isso porque a identificação de maus tratos, negligenciamento e abusos costuma ser feita pela escola.

A escola muitas vezes é o espaço onde as crianças e adolescentes pedem "socorro". Então quando os estudantes saem de casa, e se encontram com outras pessoas, conseguem expressar o que vem acontecendo. A educação domiciliar cria um obstáculo para que a escola seja esse espaço de detectar situações de violência.

Falta de avaliações de aprendizado

As Diretrizes Curriculares para a Educação Básica é a regulamentação que organiza e articula o desenvolvimento e avaliação das propostas pedagógicas de todas as redes de ensino do Brasil.

No homeschooling, não existe uma regulamentação para acompanhar e avaliar se a grade curricular básica está sendo seguida, ou seja, se os alunos que são educados pela família estão recebendo as instruções necessárias para o desenvolvimento de competências intelectuais, culturais e sociais. Com isso, não existem meios para garantir que a educação doméstica seja de qualidade, ou que a criança esteja realmente estudando e não trabalhando, por exemplo.

Nos países onde a prática é legalizada, a maioria aplica uma avaliação anual aos estudantes educados em casa, para garantir que eles estejam recebendo o ensino básico.

Investir na melhoria, não segregar

Se uma das principais justificativas dos apoiadores é a baixa qualidade de ensino no Brasil, os contrários ao modelo defendem que se deve investir na melhoria na educação e não simplesmente tirar as crianças da escola.

Os principais apoiadores do ensino domiciliar são grupos extremamente conservadores, que querem privar suas crianças de conviver com a diversidade que existe no Brasil e por isso usam essa justificativa. O movimento cresce porque não há interesse em melhorar a educação no país, e, sim, em segregar essas crianças e adolescentes, sendo uma forma de isolar os alunos de conhecimentos emancipadores.

Se por algum motivo a criança não se adapta à determinada instituição de ensino, os pais devem buscar soluções para resolver o impasse junto à escola e não simplesmente optar pelo homeschooling.

Fontes: Catarina de Almeida Santos, coordenadora do Comitê do Distrito Federal da Campanha Nacional Pelo direito à Educação e professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB); Denise Carreira, Mestre e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP); Jaque Schettert, Fundadora do Movimento homeschooling no Brasil; Rafael Gomes, Mentor do Movimento homeschooling no Brasil.