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"Homens são violentos por evitarem as próprias emoções", diz autor congolês

O escritor congolês JJ Bola, autor do livro "Seja Homem" - Divulgação
O escritor congolês JJ Bola, autor do livro "Seja Homem" Imagem: Divulgação

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

18/12/2020 04h00

"Seja homem" (Editora Dublinense) é um livro que vai te ajudar a ser um cara melhor, eu prometo. O livro do congolês JJ Bola foi lançado em outubro no Brasil e é uma espécie de guia, bem didático, que incentiva os homens a se tornarem pessoas melhores.

O autor usa vivências comuns a qualquer cara, como a competitividade exagerada no esporte e no trabalho ou o comportamento tóxico com mulheres na vida real e nas redes sociais. Seu livro usa exemplos fáceis do dia-a-dia masculino, que são, posteriormente, confirmados por números. Fala da agressividade e de frases que escutamos e reproduzimos desde a infância, como o famoso "seja homem" ou "homem não chora". E mostra como isso é tóxico, nos faz mal e prejudica a todos, em especial as mulheres. A abertura da edição brasileira é escrita pelo rapper Emicida.

JJ é um educador congolês que mora em Londres e teve uma vida múltipla. Poeta, antes de escrever trabalhou com jovens que sofrem de distúrbios de comportamento e problemas de saúde mental. Foi jogador de basquete profissional na Inglaterra até ter a vida interrompida por uma depressão profunda.

"Minha principal motivação para explorar e escrever foi a juventude masculina, especialmente os garotos e jovens com quem trabalhei", diz. "Sempre via os ciclos tóxicos se repetirem entre eles. O ciclo os feria e eles feriram outras pessoas em uma tentativa de preencher as expectativas injustas da masculinidade tóxica e do patriarcado", diz.

Tempo perdido
No fundo, o livro de JJ tenta recuperar o tempo perdido. Mulheres, LGBTs e movimentos antirracistas promoveram mudanças estruturais nos últimos anos, que já são perceptíveis. Parte da luta destes grupos envolve o fim do patriarcado. Até por isso, o questionamento e a pressão sobre o privilégio masculino também ficou mais ou menos a cargo dos mesmos grupos, embora a responsabilidade não pertença necessariamente a eles.

Talvez a luta contra o patriarcado seja levado mais a sério por outros caras se o autor for também um homem cisgênero, especialmente heterossexual.

"Nós, como homens cisgêneros, temos um monte de experiências que se sobrepõem, o que na minha opinião facilita que a gente entenda um ao outro", escreve JJ Bola em entrevista a Ecoa. "Também pode soar como uma crítica positiva e não um ataque, já que muitos homens ficam na defensiva".

Capa do livro "seja homem" - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "Seja Homem" de JJ Bola
Imagem: Divulgação

A diferença entre patriarcado e masculinidade
O autor distingue a masculinidade do patriarcado. Para ele, o que existem são "masculinidades", um conjunto de expressões exercidas por homens que podem ser saudáveis ao próximo, ou menos tóxicas, e mudam de acordo com o tempo e com o país. "No final das contas, em resumo, a masculinidade é uma performance, ou seja, ela é representada de uma maneira que reforça a visão do que é amplamente considerado normal para os que nasceram homens", escreve no livro.

Dores de crescimento
É interessante que JJ não se rende aos chavões da autoajuda. Se para muitos homens a ideia de "mulher na cozinha" parece ultrapassada, há milhares que nunca pensaram sobre divisão de tarefas. Aliás, é impressionante a quantidade de homens que nunca pensara muito sobre as próprias ações -- ou nunca pensaram sobre absolutamente nada. É uma realidade que faz todo sentido para quem é homem.

Para mim, ser homem é uma identidade cheia de regras mas também lotada de indefinições. JJ segue quase o mesmo raciocínio. Vou tomar como exemplo a paternidade, uma condição que considero impressionantemente mal executada em várias culturas. Eu não tenho filhos, mas não lembro de ter sido ensinado sobre as funções de um pai. Nem meu pai tinha ideia do que estava fazendo, quando me criou.

O verdadeiro pai é o que paga as contas, recrimina os filhos, pune se necessário? O que parece fisicamente exercer a segurança da prole, mesmo que isso signifique bater na esposa? Ou, na verdade, o pai mais comum é aquele que desaparece? O que se ausenta? Pior: o que não chora, não abraça, não escuta? Ou aquela figura doce, na ponta da mesa, como nos comerciais de Natal que ensina o filho a andar de bicicleta, dá um trocado?

Um homem pode ser doce e gentil com a esposa, mas violento e agressivo no trabalho. Ou ao contrário. Mesmo o homem mais inofensivo com os filhos pode nunca escutá-los, levá-los ao médico, ir a uma reunião escolar ou simplesmente perguntar se o filho está bem. Não à toa, há mães que se sentem "mães solo" mesmo com um pai dentro de casa. Muitas vezes, o pai parece com uma criança e oferece o mesmo esforço da mãe.

JJ Bola é mais didático. "Homens não interagem com os próprios sentimentos ou emoções, ou se importam sobre como as pessoas ao nosso redor sentem-se devido ao nosso comportamento. Normalmente, nós somos ensinados a obter o domínio", diz.

Sobre a paternidade, Bola diz que a criação conjunta de uma criança deve ser reforçada como uma qualidade a ser adquirida também pelos homens, já que não veio de fábrica a ninguém. "Eu quero que os homens tenham a mesma responsabilidade em criar uma criança do que as mulheres", diz. Ou seja: fechar as arestas de ausência, enquanto se combate a latência da agressividade.

O "pulo do gato"
JJ é inteligente ao notar que homens têm o patriarcado em comum, mas entre eles também há a chamada interseccionalidade. O escritor é um homem preto em um país racista como Inglaterra, e sabe que o abacaxi é diferente.

"Eu não sou apenas um homem, mas um homem negro. Isso significa que há uma série de normas e expectativas impostas a mim, e também mais chances de ser tratado de uma maneira diferente na sociedade", pontua. É aí que ele intercala e mostra que o patriarcado é um sistema ideológico que influencia e é influenciado pelo capitalismo, pelo supremacismo branco e pelo imperialismo.

"Racismo pode ser definido como o domínio de um corpo contra o outro, o que também é a definição das maneiras tóxicas de masculinidades que são reforçadas por uma sociedade patriarcal", explica.

Esquerdomacho
No fundo, o que JJ se propõe é o reconhecimento do patriarcado como uma ideologia tão danosa como o racismo. Melhor: reconhecer que os sistemas de dominação são uma construção masculina, no final das contas. A construção prova que também conseguimos construir outro jeito de viver.

Tudo o que JJ escreve é de domínio de muitos homens, que se apropriaram da ausência de outros para evocar uma sensibilidade dissimulada. São chamados de "esquerdomachos", caras que conhecem os mecanismos do patriarcado e, ao menos no discurso, dizem ser desconstruídos.

Apresento a JJ o conceito de "esquerdomacho", que traduzo toscamente para "leftwing macho". "É um fenômeno real não só no Brasil, mas em vários lugares", ele me responde. "Nos últimos tempos, caras tóxicos estão entrando em ambientes femininos para exercer domínio, e mais uma vez, serem privilegiados. É muito ruim que, de novo e de novo, continuemos a ouvir sobre homens com imagens públicas incríveis que são expostos por terem um comportamento tóxico na vida privada. Por isso, uma das coisas que defendo é que homens ajudem outros homens. É a nossa missão desmantelar o patriarcado', diz.

A conclusão de JJ é que os homens devem criar um bloco, um grupo que se responsabilize de forma coletiva e que carregue consigo o legado de um grupo social, como são os grupos feministas e LGBTQ IA+s.

Particularmente, sempre achei a discussão sobre masculinidade desastrada, com ares de mea culpa e certa dose de vitimização. Mas JJ Bola tem mais paciência, ergue a mão e mostra que todo mundo vai sair no lucro se os homens ouvirem-no como eu o ouvi.