Cozinha Ancestral: negras e indígenas decolonizam gastronomia brasileira
As mulheres pataxós, no sul da Bahia, estavam sempre ocupadas com a comida. A pequena Deborah Martins era criança, mas aprendia. Ora acompanhava sua avó quando a matriarca ia matar porcos e galinhas, ora sua mãe lhe ensinava a tratar os peixes. Essa vivência naturalizou a culinária na pequena Deborah. Quase como se a vida aplicasse o conceito de escrevivência ("a escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida da própria autora e do seu povo"), criado por Conceição Evaristo, à culinária ancestral. Uma "cozinhavivência"? Hoje, Deborah Martins, jovem indígena de 26 anos, conduz o projeto "Alecrim Baiano", no Instagram, onde ensina receitas e fala sobre culinária e ancestralidade.
Foi na adolescência e de forma autodidata que Deborah passou a ter contato com comidas que ela não encontrava em Alcobaça, extremo sul da Bahia, onde vivia. Nas páginas do "Alecrim Baiano" nas redes sociais, Deborah compartilha, com seus mais de 7 mil seguidores, receitas da sua vivência indígena litorânea e também as comidas internacionais que aprendeu ao longo da vida.
"Eu imaginei comigo mesma 'se eu quero experimentar, tenho que aprender a fazer'. E aí comecei a expandir o meu leque de receitas e comecei a fazer umas coisas mais 'internacionais'. Foi quando fui me dando conta que talvez eu fosse boa nisso", recorda.
O trabalho de Deborah é um exemplo de como a ancestralidade e as identidades de comunidades tradicionais brasileiras têm ganhado destaque na gastronomia brasileira. A culinária indígena não é mais mero objeto de chefs brancos que vão até aldeias trazer seus ingredientes "exóticos" para compor pratos sofisticados no sudeste. São os próprios indígenas, quilombolas e afrodescendentes que pilotam as cozinhas mais criativas e originais a pipocarem pelo Brasil.
Comida é cultura
"A comida que eu faço, por mais moderna que aparente ser, ainda é uma comida tradicional. Porque é uma comida que foi passada para mim através da minha mãe, que ela aprendeu com a minha avó e o meu avô, e que eles aprenderam com os pais. Então, não estou só apresentando um prato, estou apresentando uma história, um conceito que está ali e que vai permanecer muito depois que eu já tiver ido embora. Me sinto na obrigação de manifestar cultura dessa forma porque é a forma com a qual mais me identifico; é a manutenção da cultura do meu povo", diz Deborah.
A declaração de Deborah tem respaldo acadêmico. Vilson Caetano, doutor em antropologia e professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia), explica que a ideia de ancestralidade é fundamental para o conceito de identidades negras e indígenas. O professor destaca o conceito de "alimentos civilizatórios" para essas culturas:
"Quando você está comendo milho, feijão, mandioca, você não está comendo apenas um fruto da terra. Você está comendo um ancestral. Um ancestral que lhe dá a vida, que lhe permite sobreviver, que dá força ao grupo [para se] reproduzir, lutar e contar suas histórias.
Algumas comunidades indígenas contam suas histórias a partir da mandioca como um grande ancestral e algumas comunidades africanas contam suas histórias a partir do inhame. Isso vale para o milho e para todos os alimentos que chamamos de alimentos civilizatórios. São alimentos que são apontados ou identificados pelos grupos humanos, pelos chamados primeiros grupos, como os responsáveis por sua civilização. Como o milho, o trigo, o arroz. Esses [alimentos] são considerados ancestrais.", diz Vilson.
Do navio negreiro ao trono
Além do burburinho das redes sociais, a cozinha ancestral ocupa o ambiente elitista da gastronomia tradicional, multiplicando-se em restaurantes como o "Altar - Cozinha Ancestral", da Dona Carmem Virgínia, em Recife, e o "Casa Dona Lili", em Salvador.
Conduzido pela chef baiana Lili Almeida, "Casa Dona Lili" aposta na culinária baiana que, como explica Lili, é a fusão das culinárias europeia, africana e indígena. "Eu trabalho em respeito às tradições da nossa culinária, trabalho com a intenção de resgatar, de fazer manutenção dessa culinária".
Além de oferecer clássicos locais como acarajé e moqueca, Lili coordena um projeto educacional que mescla culinária e turismo em Salvador, levando seus alunos para fazer acarajé na Feira de São Joaquim, a maior feira a céu aberto da América Latina. A culinária foi a chave para ela entender sua conexão com a ancestralidade. "Eu conheci a minha história através da literatura da culinária afrobrasileira que eu encontrei na biblioteca do Senac, no Museu da Gastronomia, onde estudei. A partir daí, a ancestralidade influencia em tudo".
A chef, que já participou do reality show "Mestre do Sabor", diz que a descoberta de histórias sobre seus ancestrais "me tirou do fundo do navio e me pôs em um trono".
Os ancestrais também iluminam os caminhos e a cozinha da chef Marina Araújo, que oferece comida de santo - pratos que são servidos no candomblé - e receitas tipicamente cearenses no seu restaurante "O Chamego". "A ancestralidade é parte da minha personalidade. Eu me mostro para o mundo, mostrando as mulheres que vieram antes de mim", diz Marina.
"O Chamego faz uma comida aconchegante", conta a responsável pelo estabelecimento que fica na cidade de Fortaleza. Marina inspira-se na história para esculpir seus pratos. Tanto a história da sua terra, o Ceará, primeiro estado a abolir a escravidão, em 1884, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea, quanto a história de sua família, já que sua mãe também tinha a cozinha como segundo ofício.
Inaugurado neste ano, no meio da pandemia de Covid-19, o restaurante nasce depois do reencontro de Marina com sua Fortaleza. Antes disso, a chef viveu cinco anos em nossa velha metrópole, Portugal. "Esse processo de voltar [à Fortaleza] foi muito forte porque eu entendi que é muito mais fácil você sair da sua cidade do que voltar".
Apropriação cultural
As chefs de cozinha entrevistadas por Ecoa denunciam um processo de apropriação cultural das receitas de comunidades tradicionais brasileiras que são retiradas de seus contextos, levadas para centros urbanos e "gourmetizadas".
"A gente tem uma onda de chefs e artistas, no geral, que se apropriam demais da nossa cultura e gastronomia e levam para o sudeste. Por exemplo, eu nunca comi um tucupi na minha vida e em São Paulo em qualquer esquina você encontra. É um roubo descarado da nossa cultura, da nossa culinária", denuncia Deborah.
O antropólogo Vilson Caetano conta que as receitas ancestrais de povos originários têm relação direta com o momento de formação desses grupos humanos. Ou seja, a história desses povos é intrínseca ao seu modo de comer.
"A apropriação cultural da culinária acontece quando você se apropria de alguns elementos da cultura, de alguns ingredientes, de alguns modos de fazer, de algumas apresentações e aparta do seu cotidiano ou introduz alguns elementos que não permite que as pessoas ao comer determinada comida, ao ter contato com determinada receita, tenham acesso às histórias e vivências do grupo que a produziu", resume.
Deborah e Vilson apontam como saídas que os clientes finais busquem consumir culinária diretamente dos povos tradicionais. Além disso, o professor diz que levar esses conhecimentos para a academia também é uma forma de protegê-lo. Lili, por sua vez, está determinada a passar seu conhecimento adiante e aposta na coletividade. "Não fico mais pensando no que fazer para impedir [que a apropriação cultural aconteça]. A gente vive num país extremamente racista. Eu sozinha não vou conseguir mudar o sistema. Eu tento dar a mão a pessoas que estão na luta", reflete.
A luta contra a apropriação cultural pode soar enfadonha, mas é importante já que as próprias chefs são constantemente cobradas. Apesar do sangue pataxó resistindo firme nas veias e da "cozinhavivência" que pratica sob as memórias das matriarcas da sua família, Deborah Martins tem sua identidade questionada por não representar o estereótipo que a sociedade criou para pessoas indígenas:
"Eu postei receita de ratatouille e falaram que eu não era indígena de verdade porque eu estava fazendo comida francesa, sendo que a base do prato é tomate e tomate é da América Latina, mas todo mundo acha que é do mediterrâneo. Então falta informação e sobra preconceito".
Receitas que libertam
Bolo Angola da minha mãe, por Marina Araújo
Ingredientes
12 ovos inteiros
5 colheres de cacau alcalino
10 colheres de açúcar mascavo
300g de coco ralado
1/2 colher de sopa de fermento
12 colheres de sopa de manteiga animal
1/2 colher de chá de essência de baunilha
Modo de preparo
1) Misture todos os ingredientes líquidos, depois os secos, exceto o fermento.
2) Junte e misture até obter uma mistura homogênea.
3)Asse em forma untada e enfarinhada em forno preaquecido a 180 graus até que esteja firme.
4) Finalize com uma boa camada de brigadeiro, granulado de chocolate e cerejas
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Moqueca de peixe, por Deborah Martins
Ingredientes
5 postas de um peixe bom pra assar (badejo, robalo, dourado, bijupirá, vermelho, por exemplo)
2 xícaras de aroeira (pimenta rosa)
1/2 xícara de azeite
2 dentes de alho
10 folhas de alecrim
Sal a gosto
5 pedaços de folha de bananeira de tamanho que dê pra cobrir as postas
Modo de preparo
1) Bata todos os temperos no liquidificador até formar uma pasta;
2) Passe a pasta por toda a posta do peixe;
3) Passe as folhas de bananeira levemente sobre o fogo para amolecer, senão pode quebrar quando você for enrolar a posta;
4) Enrole a posta na folha de bananeira como se estivesse embalando um presente;
5) Use barbante ou "cordas" da própria bananeira pra amarrar o embrulho;
6) Leve ao forno ou coloque numa grelha em cima da lenha;
7) Deixe por, aproximadamente, 7 minutos de cada lado (se for na lenha) ou 14 minutos no forno preaquecido a 200°C
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Colaborou nessa reportagem: Fred Di Giacomo (Edição).
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