Jovem de 20 anos liderou resgate e cuidado de animais feridos no Pantanal
Quando Eduarda Fernandes, 20, acompanhou pela primeira vez um grupo de 20 turistas nas matas do Pantanal, não imaginou que, dois anos depois, a floresta seria consumida pelo fogo. Em julho, viu chamas de 30 metros nas copas das árvores, perto da pousada em que trabalha, na região de Porto Jofre, localizado a 235 km de Cuiabá.
O incêndio no Pantanal foi o pior já registrado. O fogo na maior planície alagada do mundo consumiu mais de 4 milhões de hectares, aponta o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A área é equivalente a 27 vezes a cidade de São Paulo. E corresponde a mais de 27% do bioma.
Desde que viu as árvores queimarem na sua frente, Eduarda decidiu arregaçar as mangas e agir. Desde então, trabalhou dia e noite resgatando e alimentando os bichos da floresta. Hoje, é uma liderança na região. "Eu só fui entender a proporção do que estava acontecendo quando vi o fogo. Os animais saíam machucados da mata. É catastrófico", lamenta.
Voluntariado e ação
Eduarda cresceu rodeada por bichos na fazenda do avô, em Rondônia. Desde pequena ela sabia que iria trabalhar com animais. Assim que terminou o ensino médio, pensou em ser veterinária. Mas optou por trabalhar com a fauna e a flora do Pantanal para ter certeza da escolha. Ela se mudou de Cuiabá (MT) para Porto Jofre. Lá, descobriu a sua vocação: o turismo da vida silvestre.
A guia de turismo acompanha os visitantes em safáris de animais. Eles observam macacos, antas, passarinhos e onças. "Sempre gostei de ver os bichos na vida selvagem. Eu gosto de apreciar de longe, admirando. Tenho esse amor pelos animais", conta.
É por isso que, assim que o incêndio chegou próximo à pousada, Eduarda pediu ajuda para o Ibama e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) de Mato Grosso. Mas, na época, nada foi feito. "O pessoal [órgãos governamentais] não tinha ideia do que estava acontecendo na mata. O governo demorou um tempo para se organizar."
Foi então que decidiu chamar um grupo de pessoas para resgatar os animais. A equipe conta com 18 voluntários de diversas regiões do Brasil, como Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e também os próprios pantaneiros. "Muita gente se mobilizou pela causa. Contamos com profissionais com experiência com bichos, como veterinários e biólogos", ressalta Eduarda.
O projeto é um dos braços do Pantanal Relief Fund, um fundo financeiro criado virtualmente para resgatar os animais atingidos pelo incêndio. A "vaquinha virtual" atingiu mais de 78 mil dólares. O valor foi destinado a quatro grupos, entre eles, a equipe de Eduarda.
Turismo no Pantanal
Uma das primeiras ações da guia de turismo foi transformar a pousada em que trabalha em uma base para os voluntários dormirem e para os primeiros socorros dos animais. O local conhecido como Reserva Ecológica do Jaguar é da família de seu noivo, que prontamente aceitou ajudar. Há espaço de sobra no hotel. Isso porque o empreendimento não recebia clientes desde o começo do ano.
E não foi só essa pousada que enfrentou cancelamentos. De acordo com a Federação Brasileira de Hospedagem e Alimentação (FBHA), houve queda de 90% no faturamento de 63 pousadas no Pantanal desde o início da pandemia. As queimadas trouxeram mais prejuízos. "Todas as reservas dos clientes foram canceladas ou reagendadas", lamenta Eduarda.
O turismo é uma atividade importante na região. Movimenta cerca de 7 milhões de dólares por ano, de acordo com a ONG WWF-Brasil. "A melhor forma de conservar o Pantanal é fazendo turismo. A forma econômica da região mudou", explica a guia.
O resgate dos animais
A primeira vez que Eduarda foi para a mata com os voluntários não reconheceu a floresta. Ela encontrou cobras, rãs e aranhas carbonizadas. Árvores imensas viraram cinzas. O calor era insuportável. A fumaça turvava a visão e machucava os olhos. "A gente não conseguia ficar muito tempo dentro da mata. Não tinha sombra porque as árvores tinham morrido. Eu só pensava: 'nenhum animal sobreviveu''', lamenta. "A sensação maior é de impotência. E aí eu me pergunto: 'O que eu posso fazer?', 'Por que isso está acontecendo?'. Você vê a destruição na sua frente e não consegue fazer absolutamente nada."
Ela tem razão. Quando o fogo queima a floresta, a equipe não consegue socorrer os animais encurralados no incêndio. O grupo conta com o auxílio dos bombeiros para saber quais áreas são seguras. "A gente vai em pontos que já queimaram há dois, três dias." Eles resgatam diversos animais feridos como cobras, jacarés, onças-pintadas e macacos.
Os bichos que mais socorrem são os quatis, lontras e antas. "A anta sofre com falta de água. Quando os rios e lagos secaram, elas começaram a sair, andar à procura de água." As equipes no Pantanal, contando com a de Eduarda, resgataram mais de 120 animais. Como é o caso de Ousado, uma onça-pintada machucada com queimaduras de segundo grau.
Ousado, a onça-pintada que voltou para a mata
Em uma terça-feira de outubro, Eduarda acordou bem mais cedo que o usual. Às 2h estava pronta para organizar a soltura da onça-pintada Ousado. Após 36 dias em tratamento, o felino debilitado voltou à floresta. O animal fez uma longa viagem de carro que durou 21 horas. Também percorreu um trecho de barco até a localização exata do resgate, em Porto Jofre.
Ele foi encontrado próximo ao Parque Estadual Encontro das Águas, área que abriga o maior refúgio de onças-pintadas no mundo. Mais de 90% do parque, segundo o Instituto Centro Vida (ICV), foi destruído pelo fogo. Pelo menos 200 onças foram feridas, mortas ou se deslocaram nos incêndios no Pantanal, segundo a organização Panthera. A espécie é considerada quase ameaçada de extinção, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza.
A soltura de Ousado trouxe esperança diante de tantas perdas. "Deu um significado ao que a gente fez nos últimos 60 dias. A onça é o maior felino das Américas, o que torna tudo muito especial. A volta dele para casa simboliza o esforço de todos que trabalharam no combate aos incêndios florestais e no resgate da fauna afetada", comemora Eduarda.
Fome cinzenta
Os trabalhos continuaram, com o grupo investindo em alimentar os animais na floresta. Os bichos sobreviventes encontram dificuldades em encontrar alimento e água. É o período de fome cinzenta, explica Eduarda. "Quando o fogo passa, o animal não tem mais o que comer. Ele acaba morrendo, definhando por falta de comida."
Para aliviar a situação, os voluntários espalham frutas e legumes ao longo da rodovia Transpantaneira. Mais de uma tonelada de comida foi distribuída em 60 pontos por diversas equipes como a de Eduarda. Os porcos do mato ganham milho, e as antas recebem abóbora. Já as lontras comem iscas de peixe. Também são fornecidos melão, laranja e cenoura.
Eduarda sabe que o resgate dos animais é importante. Mas costuma dizer que a ação "tem um impacto zero". Ou seja, é uma atitude pequena diante da imensidão do fogo que consome a floresta. "A gente pode salvar alguns animais. Mas é algo mínimo perto do que é o Pantanal. O que a gente está fazendo é uma causa, é um movimento para que incêndios assim não aconteçam de novo", explica.
As ações dos voluntários só serão realmente eficientes se as pessoas agirem de uma forma diferente, pontua a guia de turismo. "É preciso repensar a forma de agir e de se alimentar para ajudar a salvar a mata." E não são só as mudanças individuais que importam. "A partir de agora a cobrança no governo tem que ser mais árdua. Eu entendo que se eu não cobrar do governo o que eles têm que fazer para mudar, tudo o que a gente fez aqui não faz nenhum sentido", defende.
Eu chorei diversas vezes. Mas eu me cobro para não ficar me lamentando. Eu procuro buscar soluções.
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