Mesmo com mais mulheres, prefeituras brasileiras estão longe da diversidade
Apenas 11,8% dos municípios brasileiros elegeram prefeitas em 2020. O dado ilustra como, apesar de comporem mais da metade da população e do eleitorado brasileiro, as mulheres ainda são sub-representadas na política nacional.
Para mudar esse cenário, a pauta da igualdade de gênero — e, mais amplamente, da representatividade na política — vem ganhando visibilidade. Alguns prefeitos recém eleitos anunciaram nos primeiros dias de 2021 secretariados paritários quanto ao número de mulheres e homens, uma medida ainda pouco vista na política brasileira. Isso quer dizer que nessas prefeituras, o primeiro escalão de cargos é ocupado pelo mesmo número de homens e mulheres.
Foi o caso de Margarida Salomão (PT), prefeita de Juiz de Fora (MG), e João Campos (PSB), chefe do executivo municipal do Recife (PE), que nomearam respectivamente dez e nove secretárias, determinando que mulheres ocupem metade das pastas existentes. Em Belém, o prefeito Edmilson Rodrigues (PSOL) também empossou 18 mulheres como titulares das 37 secretarias, coordenadorias e fundações que estão sob sua administração.
"O fato de termos prefeitos assumindo essa responsabilidade é fruto de uma luta histórica dos movimentos feministas por representação política", disse a Ecoa Beatriz Rodrigues Sanchez, doutoranda em Ciência Política pela USP.
Embora o prefeito de Recife tenha alardeado o feito em suas redes sociais afirmando que a capital pernambucana foi a primeira da história do país a construir um secretariado com paridade de gênero, o debate não é novo. Ao assumir a prefeitura de Fortaleza em 1989, Ciro Gomes montou uma equipe de secretários formada por sete mulheres e sete homens. Ele reproduziu a ação na esfera estadual como governador em 1991.
Para a professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense Flavia Rios, a paridade de gênero nos cargos de primeiro escalão do poder executivo deveria ser a norma, mas ainda está longe de se tornar uma realidade no Brasil.
"A paridade de gênero deveria ser um padrão, mas estamos em um contexto em que ela é exceção e que os políticos têm que vir a público anunciar a ação como se fosse algo extraordinário", comentou Rios em entrevista a Ecoa. Ela acredita que a medida deveria se normalizar e se expandir para todas as prefeituras brasileiras.
Países da América Latina, como o México (veja abaixo), foram pioneiros na adoção de políticas de paridade de gênero nas diferentes esferas de poder. Em um estudo realizado em 2019 pela ONU Mulheres e pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o Brasil ficou entre os piores países latino-americanos no que diz respeito aos direitos políticos das mulheres e à paridade de gênero na política, devido à sua baixa pontuação (39,5 de 100) no Índice de Paridade Política calculado pela iniciativa. Somos o nono lugar em uma lista de 11 países.
Políticas feitas por quem mais usufrui delas
Há uma série de justificativas para a adoção da paridade de gênero na política, em todos os níveis de governo. A primeira delas, segundo enfatizam as entrevistadas, é que se trata de um princípio fundamental para a democracia. Apesar de serem maioria na população brasileira, as mulheres são um dos grupos sociais que enfrentam barreiras históricas para adentrar espaços de poder e decisão, o que faz com que essas esferas não espelhem a composição da sociedade brasileira.
A segunda diz respeito à formulação de políticas públicas. No nível da gestão municipal, por exemplo, a paridade nos secretariados tem um efeito relevante porque é nas secretarias que as políticas são formuladas e implementadas.
A professora Flavia Rios enfatiza a importância de que as pessoas à frente das pastas tenham perspectivas diversas para dar conta das demandas da sociedade.
"Não podemos ter um secretariado completamente formado por homens quando a maior parte dos beneficiários das políticas públicas são principalmente mulheres negras, que são as pessoas que mais precisam dos serviços públicos", afirma Rios. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde 2019 divulgada no ano passado, por exemplo, mulheres correspondem a 70% dos usuários da atenção básica do SUS, sendo 61% delas mulheres negras.
"A experiência de vida das mulheres é diferente da dos homens, assim como as mulheres negras possuem uma perspectiva diferente das mulheres brancas. Esse olhar diferenciado não é fruto de uma essência supostamente natural das mulheres, mas sim de suas vivências e formas de estar no mundo", afirmou a doutoranda em Ciência Política na USP Beatriz Rodrigues Sanchez.
Ela cita como exemplo a pauta das creches, para a qual mulheres envolvidas na política costumam apresentar maior sensibilidade pelo fato de ainda serem as principais responsáveis pelo cuidado com os filhos. O mesmo acontece com o problema da violência doméstica, do qual elas são as principais vítimas e por isso se encontram uma posição "privilegiada" para apresentar soluções.
"A representatividade feminina é importante para que mulheres possam governar para todas as pessoas, mas também levando em consideração seus interesses, suas experiências, sua própria condição de mulher em uma sociedade extremamente desigual", complementou Flavia Rios.
Um terceiro aspecto positivo relacionado ao aumento da participação das mulheres na política é o combate a estereótipos de gênero. A ausência ou presença mínima delas nos espaços de poder reforça o lugar-comum de que a política não é lugar de mulher. Rios destacou que o mesmo vale para a ausência de pessoas negras.
"Não há nada mais indutor de desigualdades do que representações que solidificam estereótipos e rótulos", disse.
Além do gênero
A foto publicada nas redes sociais do prefeito recifense João Campos saiu pela culatra e foi alvo de muitas críticas. Em uma cidade em que a maioria da população é negra, o fato de haver apenas um negro entre os secretários nomeados foi ressaltado nos comentários das postagens. A cobrança também se estendeu à representação de outros grupos, como indígenas, trans e pessoas com deficiência.
"A paridade de gênero é extremamente importante, mas se não há igualdade racial, essa paridade é manca", afirmou a professora Flavia Rios, que também é pesquisadora do Afro Cebrap, Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. "Ela não é completa, porque não dá conta da diversidade dos grupos sociais, especialmente de uma camada populacional muito expressiva que é formada pela população negra".
Para Rios, faltou visão política a Campos, que perdeu a oportunidade de garantir simultaneamente a equidade racial e de gênero entre os secretários. "Estamos muito distantes de uma paridade de gênero considerando a dimensão interseccional. Isso merece dedicação legislativa, das instituições responsáveis pelas eleições, dos partidos políticos e também da sociedade civil organizada, para criar condições de debater, publicizar, dar visibilidade à sub-representação política desses grupos e aos mecanismos que levam à exclusão deles", disse.
O secretariado de Belém, por outro lado, conta com a participação de mais mulheres negras e da primeira mulher indígena a integrar o alto escalão da administração, a ouvidora geral municipal Márcia Wayna Kambeba.
Para Kambeba, que é geógrafa e escritora, sua nomeação ao cargo "representa uma maior visibilidade para nós indígenas mostrarmos a nossa forma de fazer política, sobretudo pensando no bem comum e oportunizando que as reivindicações da população sejam ouvidas dentro da nossa administração", disse a Ecoa.
O que mais é preciso fazer?
Segundo a pesquisadora Beatriz Rodrigues Sanchez, a paridade de gênero nos secretariados municipais pode ter efeitos significativos para a participação das mulheres na política brasileira principalmente por duas vias.
A primeira é mais direta: elas ganham maior visibilidade como secretárias, o que pode facilitar a continuidade de suas carreiras políticas. A segunda opera pela dimensão simbólica, influenciando outras mulheres a entrarem na política ao demonstrar que elas também podem ocupar esses espaços.
Por se tratar de uma medida ainda restrita a alguns governos e cargos no Brasil, Sanchez defende que a paridade de gênero seja institucionalizada por meio de leis e outros instrumentos.
Foi o que aconteceu no México, onde a obrigatoriedade de que 50% de todos os cargos públicos sejam ocupados por mulheres foi instituída em 2019 pelo Congresso. O país ficou em primeiro lugar no ranking de 11 países latino-americanos do estudo já citado sobre participação política feminina que foi feito pela ONU Mulheres e pelo Pnud em 2019.
A guinada na participação política das mulheres no México começou pela legislação, com cotas de gênero para os partidos. No caso dos cargos eletivos, a lei brasileira já garante cotas para candidaturas para mulheres e pessoas negras. Esses mecanismos, no entanto, são burlados pelos partidos e ainda não produziram os efeitos que poderiam alcançar.
Reforçar a aplicação dessa legislação, estudando ampliá-la para incluir reservas de assentos parlamentares e investigando as fraudes cometidas pelos partidos é parte do caminho apontado pela professora Flavia Rios para alcançar maior representatividade na política.
"Também é preciso que a sociedade civil se organize para garantir formação, qualificação e investimento nas candidaturas de mulheres, negras, indígenas e LGBTs. São grupos sub-representados que precisam de um olhar especial no que diz respeito à efetivação, aperfeiçoamento e ampliação dos mecanismos legais que já existem para garantir a diversidade", afirmou.
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