O que significa trabalho escravo contemporâneo? Como denunciar?
Se você acompanhou a história de Madalena Gordiano, que foi libertada após viver 38 anos em condições de escravidão em Minas Gerais, você pode ter se surpreendido e até achado que essa é uma situação incomum no Brasil. O que não é o caso.
Segundo os dados mais recentes levantados pela Organização Internacional do Trabalho, mais de 40 milhões de pessoas foram vítimas da escravidão moderna no mundo. No Brasil, a Secretaria de Inspeção do Trabalho mostra que de 1995 a junho de 2020 foram resgatados 55.013 trabalhadores nessa situação.
Nesta quinta (28), celebra-se o Dia Nacional do Combate ao Trabalho Escravo e do Auditor Fiscal do Trabalho. Mas, afinal, o que significa trabalho análogo ao de escravo, como podemos identificá-lo e como podemos combatê-lo?
O que é trabalho escravo contemporâneo e como podemos identificá-lo?
Você pode chamar de trabalho escravo moderno, trabalho análogo ao de escravo ou trabalho escravo contemporâneo, mas todos se referem à mesma coisa. O trabalhador está em situação de cerceamento de liberdade, ou está em condições degradantes de trabalho, ou está em jornada exaustiva, ou está em situação de servidão por dívida ou tudo isso junto. É isso que diz o artigo 149 do Código Penal.
Trabalho forçado: quando há o cerceamento do direito de se desligar do patrão
Servidão por dívida: que é forçar alguém a adquirir uma dívida de forma fraudulenta e prender a pessoa por isso
Condições degradantes de trabalho: se trata de um trabalho que nega a dignidade humana colocando em risco a saúde, a segurança e a vida da pessoa
Jornada exaustiva: significa levar o trabalhador ao completo esgotamento dada a intensidade do trabalho, da exploração, que também coloca em risco sua saúde e vida
Contudo, o jornalista, colunista do UOL e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão Leonardo Sakamoto afirma que não cabe ao cidadão comum identificar se um trabalhador está ou não em situação de escravidão moderna. "Quem identifica escravidão no Brasil são os órgãos públicos. São os auditores fiscais do trabalho, os procuradores do trabalho, policiais federais, civis e militares, defensores públicos da União e procuradores da república", explica.
Qual a diferença entre o trabalho escravo contemporâneo e a escravização de indígenas e africanos que ocorreu no Brasil?
Você ainda pode estar se perguntando: mas a escravidão não foi abolida em de 13 de maio de 1888? Sim, mas a escravização de negros e indígenas do período colonial e imperial brasileiro se difere da que acontece hoje por meio de uma característica: o entendimento jurídico por parte do Estado de que uma pessoa é proprietária de outra.
No artigo "Código Penal escravagista e Estado", que se encontra no livro "Dicionário da escravidão e liberdade" organizado por Lilia Schwarcz e Flávio Gomes, as historiadoras Hebe Mattos e Keila Gribgerg contam que, juridicamente, de acordo com as Ordenações Filipinas que regularam a escravidão pelo menos até a independência do país, o escravo era considerado um bem desprovido de qualquer direito. Hoje, o Estado brasileiro não permite, por lei, a escravidão.
Então, por que ainda existe trabalho escravo no Brasil?
Segundo o Frei Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o trabalho análogo ao de escravo só acontece porque é fonte de lucro para alguns setores. "O custo de produção com mão de obra escrava é menor do que o custo para um fabricante que respeita as normas. Não é por maldade essencialmente, é com o objetivo de lucro extra", explica. Contudo, quem é pego submetendo um trabalhador a essa situação pode sofrer reclusão, de dois a oito anos, e ter que pagar multa. A pena pode ser agravada se o escravizado for criança ou a motivação envolver preconceitos étnicos e raciais.
E qual o perfil dos escravizados no país hoje?
O perfil dos trabalhadores em situação de escravidão no Brasil pode se dar por meio de dados referentes às pessoas já resgatadas. De acordo com Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, entre 2003 e 2018, 42% dos resgatados se disseram pardos, mulatos, caboclos, cafuzos ou mamelucos, 23% se autodeclararam brancos, 18% amarelos (de origem japonesa, chinesa, coreana etc) e 12% pretos. Sobre esses dados, Plassat comenta que pode haver uma confusão na autodeclaração. "A escravidão moderna tem cor e essa cor é negra", pontua. Dados da própria Secretaria de Inspeção do Trabalho mostram que, de 2016 a 2018, os negros corresponderam a 82% dos resgatados.
Como mostra o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, o trabalhador escravizado, além de negro, é homem, a maioria tem entre 18 e 24 anos, baixa escolaridade (31% são analfabetos), e trabalha no campo. Os três principais setores econômicos mais envolvidos com mão de obra escrava são: criação de bovinos para corte (32%), cultivo de arroz (20%) e fabricação de álcool (11%). "Quem cai na escravidão moderna tem um perfil vulnerável, essa vulnerabilidade acontece porque as pessoas não tiveram acesso a políticas públicas no geral", comenta Plassat.
Como o governo brasileiro tem combatido esse tipo de trabalho?
Historicamente, apesar de diversas denúncias feitas por entidades da sociedade civil, o governo brasileiro sempre negou que houvesse trabalho análogo ao de escravo no país. Isso mudou em 1995, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), não só reconheceu, perante a Organização das Nações Unidas (ONU), esse tipo de violação, como também se comprometeu a criar políticas de combate.
Com isso, houve a criação das primeiras equipes de fiscalização, conhecidas como Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM). O grupo atua em território nacional e é responsável por checar denúncias in loco, libertar trabalhadores e autuar os proprietários rurais. Além dessa medida, em 2003, foi lançado o primeiro Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo que apresentou medidas de combate permanente. O segundo plano veio cinco anos depois e ainda está em vigência. Ele incorporou experiências anteriores e estabeleceu melhorias nas políticas públicas. A Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) é o órgão responsável pelos planos. Hoje, o Brasil é referência global de combate ao trabalho escravo.
O que acontece com as pessoas que são resgatadas?
Quando o trabalhador é resgatado, ele tem direito ao pagamento dos salários atrasados e dos direitos trabalhistas. O Ministério Público do Trabalho também pode mover uma ação civil pública contra o empregador pedindo uma indenização por danos morais ao trabalhador.
Além disso, o trabalhador tem o direito de receber três meses de seguro desemprego e, em alguns casos, pode ser colocado em programas de inserção social do poder público ou de entidades privadas. "Isso ainda é muito pouco e muitas vezes essas pessoas acabam novamente caindo na mesma teia de escravidão, não é a maioria, mas acontece por falta de oportunidades que garantam uma vida digna", comenta Sakamoto.
É preciso investir no combate ao trabalho escravo, mas ele não é o suficiente. Se não houver políticas de prevenção, de inclusão, de atendimento às vítimas para que elas não voltem a ser exploradas não adianta.
Quem é autuado ainda tem direito de se defender em duas instâncias. Depois desse período, a multa pode ser cobrada, executada e o nome da pessoa entra na lista suja do trabalho escravo por dois anos. Essa lista é um cadastro de empregadores flagrados com mão de obra escrava, e existe para que as pessoas saibam quem já utilizou esse tipo de trabalho. "A lista é um dos instrumentos mais importantes de combate ao trabalho escravo que a gente tem hoje", comenta Sakamoto.
Mas é possível erradicar o trabalho escravo no Brasil? O que eu posso fazer para ajudar?
Se o trabalho escravo moderno existe apesar das leis que o proíbem e da fiscalização por dar lucro, para erradicá-lo é preciso fazer com que ele não seja lucrativo. A criação da lista suja, por exemplo, foi um passo importante dado pelo Estado para expor empregadores autuados. Mas a sociedade civil e as empresas também podem fazer a sua parte.
"Tem boas empresas que verificam suas cadeias produtivas, checam de quem estão comprando e para quem estão vendendo para ver se não estão financiando trabalho escravo", exemplifica Sakamoto. Mas ele pontua que o combate ao trabalho escravo começa na sociedade civil. Por isso é importante, como afirma o Frei Xavier Plassat, que o assunto seja discutido em escolas para que, munida de informação, a sociedade possa ajudar com denúncias.
Caso você desconfie de uma situação de trabalho escravo, pode denunciar por telefone no Disque 100. A Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério da Economia (Detrae) também criou um outro canal de denúncia que você pode acessar aqui. O Ministério Público do Trabalho também recebe denúncias via prédios da procuradoria e por meio dos sites das procuradorias regionais. O MPT possui ainda um aplicativo para denúncias, MPT Pardal, que você pode encontrar disponível para Android e iOS. "Denuncie, procure se informar, hoje não tem mais tanto risco de ser prejudicado por denunciar essas coisas", diz Plassat. Ele também pontua a importância de eleger pessoas comprometidas no combate ao trabalho escravo. "É importante exigir que os candidatos e governos se pronunciem sobre isso".
O trabalho escravo se sustenta no tripé impunidade, pobreza e ganância. É preciso atuar nesse tripé, tem que punir quem se utiliza desse crime, tem que atuar para reduzir a pobreza, tem que aumentar as oportunidades das pessoas de forma a garantir que elas possam ter uma vida digna e tem que continuar tornando o trabalho escravo um mau negócio.
Leonardo Sakamoto, jornalista, colunista do UOL e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.