Empresa reinventa cerveja com especialistas negros após acusação de racismo
A cervejaria Dogma, de São Paulo, iniciou o lançamento de uma linha de cervejas em homenagem à ancestralidade negra após cometer um erro que causou repercussão nas redes sociais no ano passado. À época, o trouxe à tona a discussão sobre representatividade de pessoas negras em marcas e produtos e exigiu mudanças da marca.
Por anos, a cervejaria vendeu a Cafuza, uma cerveja Imperial India Pale Ale ilustrada com uma fotografia do século 19 de uma mulher negra, muito possivelmente escravizada, da década de 1860 em Pernambuco. O rótulo era considerado "premium", elogiado pela crítica e um dos principais rótulos da cervejaria fundada em 2015.
A receita foi descontinuada e a empresa passou por um processo de repensar o que estava fazendo. Além de uma cerveja nova, feita por especialistas negros e lançada na última quinta (21), a cervejaria financiou bolsas de estudo para formar sommeliers negros. No futuro, os formados deverão ser contratados pela marca, que hoje tem cerca de dez funcionários.
O novo rótulo é o primeiro de uma série com três cervejas chamada "descolonização". O nome ilustra o processo passado pela empresa após passar por um turbilhão transformador.
Erro Não envolver especialistas sobre temas novos para a companhia e não pesquisar a fundo antes de tomar decisões
Aprendizado Investir na diversidade de colaboradores, consultando e colaborando com especialistas negros, que além de terem tempo para elaborar melhor uma ideia, contaram com liberdade para oferecer novas perspectivas
A "cerveja cancelada"
Em 2020, ativistas e aliados do movimento negro se incomodaram com a cerveja da Dogma que reproduzia a foto de uma mulher negra do século 19, provavelmente escravizada, retratada sem contexto histórico. Houve incômodo que um retrato tão sensível da história brasileira fosse "transformada" em um produto vendido a um público com poder elevado de consumo.
A descrição da receita também causou desconforto. A Cafuza era uma cerveja "Imperial India Black Ale" com traços de "maltes escuros", termos que descrevem a origem e o sabor dos ingredientes. Em 2017, uma revista especializada a avaliou como reflexo da "miscigenação brasileira em sua receita, assim como os cafuzos resultaram da mistura entre índios e negros".
A análise era similar ao que os donos da Dogma pensavam quando a criaram, em 2015. Os três sócios, que são brancos, acreditavam que a cerveja seria uma homenagem à miscigenação e à resiliência do povo negro brasileiro. Por isso, era "forte", com 9,2% de teor alcoólico (uma cerveja pilsen convencional fica entre 4% e 5%).
Para ilustrar a criação, os cervejeiros usaram a imagem exibida para explicar o termo "cafuzo" no Wikipédia. A foto é do fotógrafo Alberto Henschel, com data aproximada de 1869. Foi tirada em Pernambuco e encontra-se em domínio público. É um dos raros registros fotográficos de afro-rasileiros antes da abolição da escravidão no Brasil, em 1888, e muitos ativistas do movimento negro acreditam que seja o retrato de uma mulher escravizada.
A associação dos termos índia e black (negro) com o termo "imperial" também caiu mal. O período histórico do Império Brasileiro teve negros e indígenas escravizados, mortos e violentados sexualmente.
À época, Ecoa conversou com um dos sócios que reconheceu que a ausência de pessoas negras na empresa e no mercado cervejeiro pode ter levado à escolha.
Afrocerva
Quando foi descoberta pelas redes sociais, a receita Cafuza já estava fora de circulação, mas o debate explodiu em polvorosa. Para lidar com a situação, os cervejeiros contrataram um grupo de sommeliers negros para elaborar a nova série. O processo durou cerca de seis meses, entre a elaboração do conceito, a criação da receita e o lançamento no mercado.
A primeira das três cervejas se chama Hantu, um termo da filosofia africana ubuntu que descreve o tempo e o espaço. Faz sentido: parte da receita ficará armazenada em barris de fermentação de baobá para ser utilizada na terceira latinha da série, que deve sair apenas em 2022. Será chamada Muntu.
O tempo de guarda se encaixa no conceito da filosofia ubuntu de que o mundo é interligado, e que o eu que existe agora depende de um todo. O termo também foi escolhido por inspiração griô, termo que ilustra a atividade ancestral africana de transmissão da história e do pensamento oral para a reflexão das próximas gerações, comum nos países na região da África Ocidental.
O nome conceitual foi escolhido para evitar a homenagem de uma personalidade negra em particular. "Não queríamos levantar um símbolo de uma pessoa, por mais que a gente tivesse milhares de pessoas que pudessem estampar a lata. Tinha que ser algo que falasse da mesma diversidade e das mesmas aflições que a gente pode ter em comum, mesmo em toda a nossa diversidade, pois somos diversos", explica a sommelierè Sulamita, do coletivo Afrocerva.
A imagem da lata ficou a cargo do artista plástico João Gabriel, mineiro com experiência em pinturas em terreiros, espaços públicos e quadros que reverenciam a ancestralidade africana. O pôster e uma camiseta que ilustram a série serão colocados à venda e o dinheiro será revertido para o coletivo cervejeiro negro Afrocerva.
Mas e o sabor?
A receita da cerveja Hantu é uma saison, que dá a sensação de acidez leve na boca, segundo os sommeliers. "Toda vez que as pessoas fazem uma cerveja relacionada às pessoas negras, a faz preta. A gente disse: para com isso! Vamos sair da mesmice. E queríamos provocar com uma sensação, que é acidez", explica Glauco Ribeiro, sommelier à frente da página "Palavra Maltada".
O brainstorming entre os cervejeiros trouxe referências que vão da literatura de Conceição Evaristo ao afrofuturismo. A sommelier Sara Araújo trouxe um ponto que o grupo considerou importante: o aroma.
Segundo ela, o cheiro ocupa um papel duplo na vida das pessoas negras, que desde a infância ouvem que devem redobrar a limpeza e os odores para diminuir a atribuição racista de que negros não são cheirosos. O aroma então é um misto do suco de caju e do cajá criando um odor adocicado de um "banho de folhas", como descreve Sara. Outros ingredientes são o coco e o melado da cana.
"O coco dá as notas e está muito ligado ao tabuleiro das mulheres negras, que eram empreendedoras que vendiam em tabuleiros a cocada e outros alimentos à base de coco", explica.
"A cerveja que existia anteriormente foi criada na visão do colonizador. O que estamos fazendo é descolonizando".
A condição do trio para cervejaria é que pessoas negras seriam contratadas no futuro. "A cerveja era só a cereja do bolo em um projeto maior", acrescenta Glauco.
O projeto é parte de uma iniciativa para acrescentar mais pessoas negras no meio cervejeiro. No ano passado, mensagens racistas circularam em grupos de WhatsApp de cervejeiros contra Sara. A associação da categoria emitiu uma nota em repúdio às agressões. O episódio estimulou o debate sobre o tema racial no meio.
"A gente aprendeu a ter uma visão 360 não só sobre nosso trabalho, mas sobre toda sociedade", explica Luciano Silva, um dos sócios.
A Hantu, cerveja de 473ml, será mais facilmente encontrada em mercados e lojas especializadas de São Paulo, mas também é presente em todo o país. O preço sugerido é de R$ 38.
"Aprendemos a nos colocar no lugar do próximo e aprendemos com o erro que devemos ter uma empresa cada vez mais diversa", conclui o empresário.
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