O trabalho doméstico remunerado deveria acabar?
"O trabalho doméstico está entre as ocupações mais precárias; com níveis de remuneração muito baixo, com altos riscos à saúde e à integridade física de nós trabalhadoras domésticas", diz Chirlene dos Santos Brito, diretora da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e do Sindicato Estadual dos Empregados Domésticos do Estado da Paraíba.
O debate no Brasil sobre o trabalho doméstico esquentou com a epidemia de covid-19, em que parte da população mais abastada conseguiu fazer home office em casa, para não se contaminar com o vírus, mas manteve suas trabalhadoras domésticas trabalhando todos os dias e se arriscando a contrair a doença no trajeto - geralmente cumprido no transporte público lotado.
Sintomaticamente, Cleonice Gonçalves, de 63 anos, foi a primeira vítima de covid-19 no Rio de Janeiro. A doméstica percorria cerca de 120 km de sua casa em Miguel Pereira, no sul fluminense, até o apartamento onde trabalhava no Alto Leblon, bairro nobre do Rio.
Com idade avançada, hipertensão, obesidade, diabetes e infecção urinária, Cleonice não teve direito a folga nem quando seus patrões regressaram da Itália com sintomas de covid-19. Cleonice fazia parte de uma das categorias de trabalhadores mais afetadas pela epidemia do coronavírus e pela crise econômica.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), comparando os números do segundo trimestre de 2019 com aqueles que correspondem ao mesmo período de 2020, quando os efeitos da crise do corona começaram a ser sentidos, o Brasil perdeu 1,54 milhão de postos de trabalho doméstico, o equivalente a 24,63% do total do ano passado.
Mas afinal, o que é o trabalho doméstico remunerado? Ele deve ser extinto? Se sim, o que acontecerá com esses trabalhadores e trabalhadoras?
O que é o trabalho doméstico remunerado?
O empregado doméstico ou trabalhador doméstico, é a pessoa que trabalha no âmbito de uma residência privada. Os trabalhadores realizam uma variedade de serviços, como por exemplo: caseiros, faxineiros, cozinheiros, babás, motoristas, etc.
Quem trabalha e quem emprega?
Segundo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mais de 6 milhões de brasileiros dedicam-se a esses serviços de cuidar dos domicílios e da família de seus empregadores. Desse total, 92% são mulheres, onde a maior parte (63%) é negra, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda.
A categoria também passou por um envelhecimento. Em 2018, a faixa etária de jovens até 29 anos caiu para 13%, enquanto a fatia de mulheres de 30 a 59 subiu para quase 80%. O percentual de idosas (acima de 60 anos) também aumentou, de 2,9% para 7,4%. Os números são da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE. Segundo dados do IBGE de 2018, o total de domésticas com carteira assinada caiu 11,2%. Dos 6,2 milhões, 4,4 milhões não têm carteira assinada.
"As principais empregadoras são mulheres de camadas médias e altas. Os homens costumam ser empregadores apenas em caso de ausência de mulheres na residência. Isto sinaliza uma espécie de transferência das funções, a ideia de que a dona de casa, independente de ter ocupação remunerada fora de casa ou não, é a responsável pelo trabalho doméstico", explica Soraia Mello, Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Qual a relação com a escravidão?
Da invasão portuguesa ao Brasil, em 1500, até a abolição da escravidão, em 1888, quem fazia todos os serviços domésticos das grandes residências eram as afro-descendentes escravizadas. A diferença é que, após a abolição, quem cozinhava, limpava e cuidava da casa passou da condição de escravizado a de empregado.
"O trabalho doméstico remunerado é cercado de preconceitos, estereótipos e discriminações que pesam sobre essa atividade, que são fruto de heranças históricas do patriarcalismo, da servidão e da escravatura e que foram se redefinindo de outras formas na atualidade.", explica Chirlene dos Santos Brito, diretora da Fenatrad.
"A Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) apresenta a extensa lista das tarefas relacionadas ao trabalho doméstico nas suas várias modalidades. Esses mesmos afazeres são atribuídos às mulheres em geral. E como o trabalho do cuidado que elas têm que fazer não é considerado, respeitado, elas transferem essa lógica pra nós também, não reconhecem nosso trabalho como importante. Querem pagar pouco, e por isso, não dão valor ao nosso trabalho e ainda querem nos manter na mesma escravidão", completa Chirlene, que também é trabalhadora doméstica em Campina Grande (PB), e está na função desde dos oito anos de idade.
A empregada domestica Madalena Gordiano, de 46 anos, vivia em condições análogas às de escravidão desde os oito anos de idade, em Patos de Minas (MG). Ela não recebia salário, não tinha direitos, e vivia reclusa, sob a vigilância dos patrões, e foi libertada da situação em que vivia no fim de novembro de 2020, após uma investigação do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Madalena não é a única que vivia nesta situação. Somente em 2019, segundo dados do Radar da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, em 111 dos 267 estabelecimentos fiscalizados em 2019, houve a caracterização da existência dessa prática com 1.054 pessoas resgatadas em condições desse tipo. Deste total, 14 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo doméstico, que é o mais difícil de ser identificado.
"Temos uma cultura muito forte no Brasil de não regularização das mulheres que fazem trabalho doméstico, justamente porque temos uma herança escravocrata que considera que esse trabalho doméstico não vale", explica Chirlene.
As leis trabalhistas atuais são suficientes?
"Ainda tem muitos pontos que precisam ser melhorados, por exemplo a questão das diaristas. Esse é um ponto que tem que ser melhorado, é necessário fazer uma inclusão ativa das trabalhadoras domésticas na previdência social, porque cada vez mais está sendo dificultado a aposentadoria de todas as pessoas.", explica Solange Sanches, socióloga e professora, especialistas em economia feminista, genero e polticas socias.
"E o mais importante de tudo: a legislação tem que ser cumprida, ninguém pode alegar que não conhece a lei. 'Ai, eu não tenho dinheiro para registrar a trabalhadora doméstica, porque fica muito caro', não gente, não fica caro. Você quer ter uma trabalhadora doméstica? Então você não vai no cabeleireiro por exemplo, gastar 200 reais todo sábado, você paga os direitos da sua trabalhadora doméstica", conclui a especialista, que trabalhou no DIEESE, instituição de pesquisa do movimento sindical brasileiro e na Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil e no Chile.
Deveríamos, então, não ter mais pessoas trabalhando nessa profissão?
"Não, nós como representantes da categoria temos orgulho desses profissionais e enxergamos que é uma profissão digna como qualquer outra, com um peso ainda maior, pois deixam o seio de sua família para zelar por outra, como domésticas, babás, cuidadoras etc. O que objetivamos é a evolução da sociedade no tratamento desses profissionais, que são constantemente humilhados com a violação de seus direitos. Tanto é verdade que a regulamentação de direitos só adveio em 2015, ainda assim a categoria é marginalizada em todos os sentidos", explica Nathalie Rosário, advogada do Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo (Sindoméstica).
É importante lembrar que, após a abolição da escravidão no Brasil, as mulheres e homens escravizados do país foram entregues à própria sorte, sem nenhum tipo de indenização do governo, de treinamento profissional ou de garantia de emprego. Pelo contrário, o Estado incentivou a contratação de imigrantes europeus no lugar dos escravizados para embranquecer a população. Demitir todos os empregados domésticos sem nenhum projeto de requalificação, tiraria a fonte de renda de mais de 6 milhões de brasileiros.
É possível mudar essa realidade? Quais ações podem ser tomadas?
"O que precisa melhorar é a fiscalização. A gente tem lei, mas só 30% da população cumpre. Então tem 30% de regularidade, mas tem muitas trabalhadoras que se regularizam como autônomas. Nós precisamos da fiscalização dessas leis, além da amplificação para atingir as diaristas", explica Jurema Gorski Brites, professora associada do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Chirlene quer mais: "Respeitar a legislação vigente sobre a regularização do trabalho doméstico já nos ajudaria bastante, mas é preciso mais. É preciso discutir amplamente com toda a sociedade o papel do cuidado - e de quem o exerce - para sustentação dessa sociedade."
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