Travesti Cintura Fina virou livro e símbolo do resgate histórico LGBTQIA+
No começo dos anos 1950, a chegada de uma cearense de 20 anos de idade a Belo Horizonte marcou a história da capital mineira. Cintura Fina, como era conhecida, chegou se tornou a primeira travesti de grande visibilidade na região. A constatação é do especialista em memória LGBTQIA+ e doutor em literatura brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Luiz Morando, que lançou em janeiro o livro 'Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte' (O Sexo da Palavra), uma biografia de Cintura Fina.
A inspiração para o trabalho foi uma consequência da construção de um acervo de jornais e revistas que começou a ser consolidado em 1989. Os recortes de publicações de décadas anteriores mostravam a sociedade da época e relatos de pessoas que conviveram com ela foram a matéria-prima para a obra. Além de contar a trajetória de Cintura Fina, o autor acredita que a recuperação da memória travesti seja essencial para criar novas referências para as novas gerações e incluir nos registros da sociedade homens e mulheres marginalizados.
Quem assistiu à novela Hilda Furacão, de 1998, baseada no romance homônimo de Roberto Drummond, talvez se lembre da personagem Cintura Fina, interpretada por Matheus Nachtergaele e inspirada na travesti. Justamente pela fama que a acompanhou ao longo de décadas, a intenção do professor é humanizá-la.
Figura emblemática em Belo Horizonte durante quase 30 anos, Cintura Fina ficou conhecida pela destreza com o uso da navalha. Assim como 90% das mulheres trans e travestis atualmente no Brasil, foi profissional do sexo. Teve também passagens por delegacias e respondeu a ações judiciais fruto de pequenos delitos, como roubo e furto.
"Quis tirá-la do lugar mitificado em que ficou o enfrentamento físico, a vida na esbórnia e um comportamento desregrado. A ideia é ver o que podemos reconhecer nela de importante, valioso e positivo para uma identidade e representatividade no segmento LGBTQIA+", disse. No caso de Cintura Fina, Morando explica que a agressividade que virou marca registrada era o recurso disponível para se defender: ela gostava de ser respeitada e de ver os outros respeitarem a sua identidade feminina.
De acordo com a presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Keila Simpson, a cronologia da existência trans e travesti não existe. "Precisamos resgatar as trajetórias vanguardistas. As histórias precisam ser contadas para que outras pessoas possam conhecê-las", afirmou.
Em Salvador, durante a década de 1970, Floripes foi a primeira travesti assumida a ocupar as ruas da capital baiana. Figura conhecida entre os empobrecidos, sofria com o preconceito de pessoas das classes média e alta da sociedade. Assim como Cintura Fina, Floripes não aceitava desaforos. Se um homem tentasse desrespeitá-la de alguma maneira, ela logo partia para a briga. Na virada para a década seguinte, Floripes foi brutalmente assassinada e há poucas informações sobre a sua história. Sabe-se que ela trabalhou como cozinheira em restaurantes populares, lavadora e engomadora de roupas antes de iniciar sua transição de gênero. Contudo não há informações sobre a cidade de origem de Floripes, nem sobre a sua família.
Aos 65 anos, Anyky Lima é uma raridade entre a comunidade T — a expectativa de vida para pessoas transgênero é de apenas 35 anos no Brasil. O professor Morando defende que ela deveria ter a história de vida registrada, não só pelo importante papel como ativista que remonta aos tempos de ditadura militar, quando resistiu a prisões e abusos.
De acordo com Morando, a invisibilização de pessoas como Cintura Fina, Floripes e Anyky é reflexo de um sistema de higienização estabelecido durante a construção da história. "Vários segmentos sociais não são considerados importantes dentro do paradigma de exaltar valores de um determinado grupo de pessoas, que conduz e gerencia a sociedade. Nesse sentido, é excludente e higienizador", afirmou. Outro ponto importante para o professor é avançar no resgate da história local em diversas regiões e capitais do Brasil para demonstrar as variáveis e dimensões dentro das vivências LGBTIQA+ que são plurais. Segundo ele, o conhecimento sobre outros casos que existiram no passado é uma forma de fortalecer o movimento trans e travesti. "Desmonta a ideia de que essas identidades são elementos novos e recentes, um modismo criado dos anos 80 para cá. É uma visão estapafúrdia. Por outro lado, ajuda a construir uma história mais rica e diversa", afirmou.
Para a presidenta da Antra, a distância temporal entre as gerações de travestis e transexuais permitiu que acontecesse uma revolução. "Nós tínhamos uma população identificada como travesti, que vivia com a sua vida do jeito como era possível. Com o tempo, passamos a conviver com outras identidades e pessoas demandando pertencimento. O leque é muito mais amplo do que imaginávamos", afirmou. De acordo com Keila, qualquer outra forma de ser que venha a surgir e reivindique o seu lugar deve ser apoiada. "Temos novas oportunidades de estudar, conhecer e ver que há um espectro maior do que o azul e o rosa. Há uma infinidade de cores que representam as pessoas. Elas devem ser vistas da maneira como se designam", disse.
No caso de Cintura Fina, o uso do pronome feminino para se referir a ela é uma homenagem póstuma feita pelo autor da biografia, já que havia sido tratada como um homem homossexual pela imprensa da época. Para tantas outras, qualquer tributo é impensável. "Várias morreram anônimas, ninguém as conheceu. Só nós, que convivemos com elas. As histórias não estão relatadas e logo vão desaparecer", reconheceu Keila.
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