Espetos sob viadutos, grades, muros altos: o que é "arquitetura hostil"?
A imagem do padre Júlio Lancellotti quebrando, com uma marreta, os blocos de concreto instalados sob dois viadutos na zona leste de São Paulo reacendeu a discussão sobre como a arquitetura urbana pode ser hostil. O protesto do sacerdote, que há anos desenvolve ações de acolhimento a moradores de rua, aconteceu no início de fevereiro, mas esse é um debate antigo e que ocorre em vários lugares do mundo.
O que é arquitetura hostil?
Blocos de concreto, rampas, grades, muros altos, objetos pontiagudos e até a falta de árvores são algumas das formas de impedir que pessoas acessem, deitem ou ocupem certos espaços públicos. Elas compõem o que o repórter Ben Quinn definiu em um artigo publicado no jornal britânico The Guardian como "arquitetura hostil", que na sua opinião visa afastar principalmente moradores de rua e skatistas.
"Eu definiria arquitetura hostil como a que se impõe acima do desejo da população, dos usuários daquele lugar. É uma arquitetura que afasta, que não serve como espaço de encontro. Um exemplo disso são aqueles muros gigantescos de condomínios, que criam pontos cegos nas cidades e geram insegurança para as pessoas que circulam nas calçadas", explica a arquiteta Luiza Coelho, cofundadora da coletiva Arquitetas (in)Visíveis, que discute a relação das mulheres com as cidades.
Arquitetura hostil ou cidade hostil?
Entre os arquitetos, o uso de "arquitetura hostil" causa grande incômodo, como para Nadia Somekh, presidente do CAU-BR (Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil), para quem o termo é "infeliz".
"A essência da arquitetura é o acolhimento, então é incongruente falar em arquitetura hostil, foi um termo infeliz cunhado por esse jornalista", diz. "O que há é uma cidade hostil, porque a sociedade é hostil à miséria que a gente vê e está sendo agravada pela pandemia", afirma a presidente do CAU-BR.
Opinião parecida tem a arquiteta e urbanista Ellen Yanase, que é sócia da Satrapia, uma agência de benfeitorias, que une empresas, cidadãos e o poder público para melhorar espaços nas cidades. "A arquitetura é totalmente contra a hostilidade, ela existe para proporcionar ambientes com qualidade de vida. Quando uma cidade é hostil é porque ela não pensa na arquitetura, não pensa nas pessoas", afirma.
O fato é que muitas cidades têm muretas, grades pontiagudas nos nichos de árvores ou alças que demarcam o espaço dos usuários nos bancos públicos. Isso acontece em Londres, tema do artigo de Bem Quinn, mas também em São Paulo, do protesto do padre Júlio Lancellotti, ou em Brasília, onde vive a arquiteta Luiza Coelho. Nesses e em outros lugares, diz ela, a ideia seria "higienizar" as cidades dos corpos que são vistos como diferentes.
"Historicamente esse tipo de estratégia é usada para tirar do espaço urbano quem está fora do ideal do 'cidadão de bem', ou seja, afastar as pessoas não-brancas, periféricas, em situação de rua, imigrantes, travestis, trans e mulheres desacompanhadas, por exemplo", explica.
Quais são as consequências de uma cidade hostil?
Após a repercussão dos protestos do padre Júlio, a prefeitura da cidade de São Paulo disse que houve um erro e retirou os blocos de concreto sob os viadutos da avenida Salim Farah Maluf. Em outros casos, uma das justificativas para essas estruturas hostis é a segurança de quem circula por ali. Arquitetas ouvidas por Ecoa, no entanto, dizem que essas ferramentas, ao afastar as pessoas da cidade, acabam tendo efeito contrário.
"A exclusão amplia a violência, e eu acho que estamos sentados em cima de um barril de pólvora, porque pode haver uma eclosão social dos excluídos. A consequência de uma cidade hostil é o aumento da violência", diz Somekh.
"A gente se apega a noções falsas de segurança, como ficar com medo de tudo e de todos, enquanto poderia estar se protegendo se tivesse mais pessoas na rua. Para a segurança, esse tipo de estratégia, de afastar os usuários, é muito fraca. Ao contrário, isso acaba tornando as mulheres que estão andando na rua, principalmente em horários pouco convencionais, alvos mais fáceis", afirma Luiza Coelho.
Quais são as alternativas à arquitetura hostil?
Para a presidente do CAU-BR, cidades mais acolhedoras exigem políticas integradas de inclusão. "A gente tem que trabalhar pelas reduções das desigualdades, pelo desenvolvimento econômico inclusivo, pela formulação de novas atividades de trabalho e de acolhimento habitacional", afirma.
Há ainda alternativas públicas, privadas ou comunitárias. A Satrapia junta esses três atores — para reformar espaços para que se tornem mais convidativos :"Antes de qualquer intervenção, a gente conversa para entender o que os moradores e usuários precisam para aquele espaço. A ideia não é chegar limpar e reformar o parquinho. A gente discute o que pode ser feito, envolve as pessoas e as empresas no processo de reforma, para que eles também coloquem a mão na massa e se engajem na conservação daquele lugar", diz Ellen Yanase, sobre as ações da Satrapia.
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