Ex-consultor de petroleira muda de lado para ajudar pescadores
Fabricio Gandini prestava serviço para petroleiras quando decidiu ir para o outro lado da moeda. Há duas décadas, trabalha com pescadores artesanais. Nos últimos dois anos, a especialidade dele é queda de braço. Ora com uma das principais agências ambientais do país, ora com uma multinacional bilionária.
O oceanólogo é fundador do Instituto Maramar, organização que cria pesquisas de compensação ambiental e participa de comissões para a preservação da pesca artesanal. A instituição fica na Baixada Santista, espaço de contraste entre a vida tradicional de pescadores e a escala industrial do Porto de Santos, de onde 11 milhões de toneladas de carga foram transportadas só em dezembro.
O caiçara e o executivo
Fabrício trabalha em um escritório rodeado por papéis, telefones e computadores. Há aqui e ali um toque de caiçara, como a bermuda e a ausência de camiseta quando está sozinho em sua mesa. Na maior parte do tempo é um trabalho habitual, cheio de documentos e trocas de e-mails burocráticos. A outra parte exige visita às vilas de pescadores em embates pelo território.
À frente do instituto, ele já produziu pesquisas educativas e ambientais sobre famílias e comerciantes que vivem da pesca. Ainda hoje é reconhecido por ter auxiliado os pescadores a se organizarem e a criarem associações próprias.
Mas na década de 90, Fabrício era sócio de uma empresa de consultoria ambiental para petroleiras. O negócio era certeiro e aproveitava a abertura do setor promovido pelo governo federal no setor de energia. A iniciativa saltou de quatro para cem funcionários em cerca de três anos.
"De costas para as pessoas e de frente para as empresas"
Nos anos 2000, Fabrício abandonou a sociedade. Mudou do Rio Grande do Sul para o Rio de Janeiro, foi para o terceiro setor e criou a própria instituição. "Eu senti que estava ficando de costas para as pessoas e de frente para as empresas", diz.
Uma das linhas de trabalho funciona assim: uma região recebe a instalação de um grande negócio, como uma fábrica. A população afetada tem direito a ser informada e a palpitar em audiências públicas sobre o projeto. Nesta etapa, os órgãos estaduais de meio ambiente podem exigir requisitos apresentados pelas pessoas ou por organizações da sociedade civil. É aí que entram institutos como o de Fabrício e da sua mais recente queda de braço.
Para atender às exigências, as donas das instalações contratam consultorias especializadas. Foi o que aconteceu em em 2019. A Cetesb exigiu da bilionária Comgás um estudo mais detalhado sobre o mercado pesqueiro da região da Baixada Santista, onde a companhia vai instalar uma plataforma de gás.
A exigência foi feita naquela parte de consultar a população pelo próprio Fabrício.
Ele desenhou um programa de incentivo à pesca que, segundo ele, iria mapear toda a rede pesqueira. O documento foi apresentado à Cetesb, que incialmente acatou às propostas. "A ideia era encontrar desde o cara que arruma barcos, ao que vende o peixe na cidade, (...) e estimar quanto vale o metro cúbico, de verdade, daquela água. "
Região em vermelho é local aproximado da instalação, que ficará na água
Na prática, a instalação da Comgás consiste em um terminal para navios com gás importado que irão tubular o gás para a cidade. A instalação, porém, dividirá espaço com áreas onde trabalham cerca de mil pescadores entre Santos, São Vicente e outros municípios do litoral paulista.
Por ter feito a exigência, Fabrício também foi contratado para fazer um estudo prévio por uma companhia que trabalhou para a companhia de gás. Ou seja: ele apresentou uma questão, e foi chamado a resolvê-la. "Eu não tenho conflito de interesse, eu tenho interesse no assunto", diz. "Sobrevivo disso, mas meus trabalhos são sempre de interesses coletivos."
Segundo ele, porém, a Cetesb voltou atrás ao autorizar a instalação do terminal de gás e permitiu a instalação sem exigir os requisitos feitos anteriormente. O oceanólogo reclamou nas redes sociais. Enviou e-mails à ouvidoria da Cetesb. Acionou o Ministério Público. Mas o embate ainda está longe do fim.
A Cetesb nega que tenha voltado atrás no projeto e afirma que a Comgás atendeu às exigências feitas para a compensação ambiental. A Comgás também afirma, em nota, que passou por escrutínio de órgãos ambientais e cumpriu a todas as licenças prévias e com compensações que estão sendo "rigorosamente implementadas".
O oceanólogo irá continuar com as representações. "Já não me importa quem vai fazer o meu projeto. Eu só quero que seja feito", conclui.
O humanista que virou anarquista
Fabrício pertence a uma família de classe média da Saúde, zona sul de São Paulo. Na adolescência, participou de cursos no Zoológico da capital, que fica perto da casa onde morava com três irmãos. No vestibular, foi aprovado para o curso de biologia marinha na Universidade Federal de São Carlos e em oceanografia na Universidade de São Paulo. "Mas, pô, nenhum dos dois lugares tinha praia", relembra.
Um dia, recebeu o telefonema de uma voz com sotaque gaúcho. Havia passado em um curso de oceanografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Chamou os pais, pediu dinheiro para o ônibus, um pouco para a hospedagem, e embarcou em uma viagem de 30 horas.
A mãe trabalhava como assistente social com moradores da favela e o pai era advogado. Por um ano, Fabrício trancou a faculdade para viajar com, segundo ele, 500 dólares para Europa e Ásia. Também levou um cartão dos pais, que afirma nunca ter usado. "Trabalhei em barcos na Grécia, em parques aquáticos na Indonésia", diz. "Nunca me faltou nada".
Quando se tornou mestre em oceanografia, já tinha a consultoria para petroleiras. "Mas nessa época me veio o pensamento mais libertário do juramento da oceanografia, onde prometemos defender os mares e os povos dos mares, uma parada ideológica mesmo", afirma. O ponto de virada foi fazer estudos para as empresas em vilas para pescadores, quando comia siri, conversava e via que os projetos que tocavam eram "meio furados".
A água 3D
Fabrício diz que as empresas e seus grandes negócios no Porto de Santos consideram o oceano como uma entidade "bidimensional". "A água [em Santos] é tratada como meio logístico. É como um ambiente de duas dimensões. Eu prefiro a tridimensionalidade: quem navega pela água, quem se beneficia da água indiretamente e quem está abaixo dela", diz.
O ápice de sua instituição foi em 2015, quando uma instalação da Ultracargo queimou por semanas e afetou 15 comunidades de pescadores da região que, até então, não tinha registros sobre quem eram as pessoas afetadas.
"Na parte documental que foge da alçada do pescador, o Fabrício abre os olhos para o que poderá acontecer", diz Luciano Sant'Anna, pescador representante da Colônia Z3, na região do Guarujá.
Segundo ele, mais de 1.600 pescadores trabalham na região da instalação, o que já obriga pescadores a migrar pelo estuário em busca da pesca. "Até agora, não nos foi apresentado nenhum programa que atenda ao pescador".
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