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O que significa lugar de fala? Conceito não é uma forma de calar as pessoas

João e Rodolffo do BBB21 geraram discussões sobre racismo e lugar de fala. - Rede Globo/Reprodução
João e Rodolffo do BBB21 geraram discussões sobre racismo e lugar de fala.
Imagem: Rede Globo/Reprodução

Giacomo Vicenzo

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

08/04/2021 06h00

Você já ouviu falar em "lugar de fala"? O termo se popularizou nos últimos anos no debate público brasileiro e ganhou redes sociais e televisão. Uma das grandes difusoras do conceito no país é Djamila Ribeiro, mestra em filosofia e professora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica), autora da obra "O que é lugar de fala? ".

(...) o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas, Djamila Ribeiro, "O que é lugar de fala?" (Editora Letramento, 2017)

Djamila aponta em seu livro a importância de se ouvir as diversas vozes nas análises do discurso e a necessidade de se atentar a quem enuncia a narrativa. Falando de forma mais simples: não é só "o que se fala" que importa, mas "quem fala". Pois o ponto de vista do falante parte da experiência individual e influencia seu discurso.

Engana-se quem pensa que essa ideia vá no sentido de calar vozes ou censurar pensamentos, dando somente a um grupo o direito de falar sobre um assunto ou se posicionar sobre um tema.

Ecoa conversou com especialistas para explicar de fato 'o que significa lugar de fala', desmistificar os argumentos que cercam o conceito e esclarecer equívocos que comumente surgem nas redes sociais. Confira a seguir.

A filósofa Djamila Ribeiro - acervo pessoal - acervo pessoal
A filósofa Djamila Ribeiro
Imagem: acervo pessoal

O que é lugar de fala?

O conceito é usado em muitos contextos, como comunicação, direito e análise do discurso. Uma de suas principais definições, e a mais popularmente usada no Brasil, o define como o local de fala de enunciador, no sentido de compreender de onde vem a 'voz' que fala sobre determinado tema.

"Lugar de fala é quando posicionamos economicamente, socialmente, politicamente e culturalmente a origem de uma dada narrativa e localizamos a origem e influência das narrativas que chegam até nós", explica o sociólogo Fábio Mariano Borges, consultor de Inclusão da Diversidade há 10 anos e professor visitante da Universidade de Nottingham (Reino Unido) na área.

Cada pessoa enxerga o mundo de um jeito e esse interpretar a partir de retinas diferentes dão visões de mundo distintas, que são baseadas nas experiências vividas por cada um e geram opiniões e perspectivas distintas e isso vai além da opinião pessoal.

Grupos que socialmente sofrem opressões veem o mundo de uma forma diferente de pessoas socialmente privilegiadas, por exemplo.

Existe uma linha de pensamento, o perspectivismo ou teoria do ponto de vista, que afirma que tais diferenças de experiência moldam as formas como as pessoas veem e pensam o mundo. Nesse sentido, o lugar de fala se refere justamente ao fato de que pessoas submetidas a diferentes tipos de opressão terão também prioridades e interpretações diferentes sobre a realidade, Bruna Cristina Jaquetto Pereira, especialista em gênero e raça e doutora em Sociologia pela UnB (Universidade de Brasília).

Posso não ter lugar de fala no debate de um tema?

Só posso falar sobre um assunto se o estiver vivenciando como um personagem central no contexto? A resposta é: não. Como explica Borges. "Por exemplo, um antropólogo que escreve sobre povos indígenas, está escrevendo do lugar de fala de um cientista em antropologia".

"Nem todos os grupos participam de forma igualitária das discussões e das decisões que tomamos como sociedade. Porém, não existe uma visão 'correta', mas, sim, a soma das diferentes visões sobre um mesmo tema ou sobre a realidade como um todo é necessária para se chegar a uma abordagem mais completa do real", comenta Pereira.

Se a expressão "Cale-se, esse não é o seu lugar de fala" surgir em algum debate, o sociólogo e curador de conhecimento Túlio Custódio alerta que esse é um engano:

"A leitura que se tem de lugar de fala é muito equivocada, esse conceito tem mais ligação com uma localização social, histórica, cultural e contextual de onde emana a voz e o enunciando. As pessoas confundem o lugar de fala com a lógica de autoridade, ou com argumentos de censura. Todo mundo tem lugar de fala, não é uma coisa fixa", diz Custódio.

Lugar de fala é fixo?

O local de fala pode ou não ser transitório. Por exemplo, quem é vítima de racismo por uma característica natural de sua aparência, como o cabelo crespo, ainda está no local de fala de uma pessoa negra, mesmo que alise os fios. Uma pessoa pobre que ficou rica, quando falar sobre pobreza não estará falando do mesmo lugar de fala de uma pessoa que ainda passa necessidades.

Um exemplo: a apresentação da cantora Ludmilla no BBB21 fomentou debates sobre conceito de 'local de fala' nas redes sociais. Em sua apresentação no reality global a cantora, que é negra, disse 'respeite nosso cabelo, nossa história, nossa ancestralidade'. Pouco antes o cantor sertanejo Rodolffo, que é branco, tinha feito uma piada com o cabelo crespo do professor João Luiz. Para se justificar, Rodolffo disse que seu cabelo também não era liso. Os demais participantes tentaram explicar que ele partia de um lugar de fala diferente de quem tem cabelo crespo e é negro.

"O lugar de fala pontua e também relativiza. Essa é a importância desse conceito, pois relativiza as teorias e as afirmações que muitas vezes são totalizadoras ou generalistas a respeito de um assunto", alerta Borges.

Para que serve o lugar de fala?

O conceito do lugar de fala favorece a participação de grupos que têm menos voz ativa nas decisões e rumos da sociedade. Por exemplo, na decisão de leis que regulamentem o trabalho doméstico, essa discussão é feita e realizada por pessoas que não vivenciaram essas realidades.

A partir de suas experiências, mulheres negras reivindicam a importância de se debater o trabalho doméstico remunerado. Homens brancos e muitas mulheres brancas participam do mesmo debate, muitas vezes, a partir do lugar de patrões e patroas, o que significa que terão uma visão diferente sobre o assunto e sobre a importância de discuti-lo, e também uma opinião diferente sobre as decisões que serão tomadas sobre o tema, Bruna Cristina Jaquetto Pereira, socióloga.

Pereira reforça que o conceito não é um aviso de censura, mas sim um alerta para construção de uma sociedade mais igualitária e favorece a participação de grupos historicamente marginalizados, excluídos e violentados.

"O lugar de fala ressalta a diferença de poder entre diferentes grupos e é um chamado para que estes que dispõem de maior poder desenvolvam uma capacidade de escuta dos grupos menos privilegiados. Só assim vozes que são até o momento silenciadas podem passar a contar", diz a socióloga.