Como cozinhas comunitárias têm atuado para aplacar a fome pelo Brasil
São pouco mais de 10h no Jardim Damasceno, bairro no distrito da Brasilândia, zona norte de São Paulo, quando o cheiro de comida se espalha pela vizinhança. Da laje da casa de Ronaldo de Freitas Roque, panelas com arroz, frango, polenta e carne moída ao molho de tomate estão sendo preparadas para alimentar pessoas do entorno que, com a pandemia, têm encontrado cada vez mais dificuldades para ter um prato de comida.
Ronaldo tem dormido pouco e se preocupado muito. Mas tem esperança na melhora. Todo dia, às 4h está de pé para começar a organização do almoço. Chef de cozinha, ele também é babalorixá. Em sua porta, já batia muita gente com fome. Tendo se aproximado de uma associação do bairro, que por sua vez se aproximou do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), viu nascer a ideia do projeto Cozinha Solidária. Ofereceu a laje: "Não vendo nem alugo, mas cedo pelo tempo que for preciso", conta.
Desde meados de março, de terça-feira a domingo ele prepara, com ajuda de mais duas pessoas, 100 refeições diárias. Antes das 12h, horário em que começam a servir, Gabriela*, 10, já está no portão. Ela é a primeira, como tem sido em outros dias. Com as marmitas que pega, a menina, o pai e cinco irmãos se alimentam. Já Ivonete Valentina Xavier, 62, pega uma refeição que divide com a filha e a neta. "Às vezes nem como, deixo pra elas", diz.
Carlos José dos Santos Paulino, 47, era cozinheiro antes da pandemia. Trabalhou como pedreiro para pagar as contas no ano passado, mas depois se viu sem emprego. Ainda não solicitou o Auxílio Emergencial, pois diz que não havia tido necessidade antes. Mas hoje também tem precisado da ajuda da cozinha comunitária para se alimentar.
Em coletivo, todos comem
A cozinha do Jardim Damasceno é a primeira de uma série de equipamentos que o MTST vem inaugurando - há plano de 16 unidades em áreas pobres de 11 estados. Após a zona norte paulistana, foram abertas cozinhas em Maceió e São Gonçalo (RJ). Se na pandemia servir refeições é o foco, a longo prazo a ideia é que esses sejam lugares onde as pessoas possam almoçar juntas. Na laje de Ronaldo, uma horta com temperos vem sendo feita. Os alimentos são comprados a partir de um fundo de arrecadação, e há doadores e parceiros.
"A gente quer que as cozinhas sejam política do MTST, assim como a moradia. Nas ocupações, a gente divide em grupos e cada um tem sua cozinha central, e a gente viu que essa é uma experiência muito boa, porque às vezes a pessoa não tem o que comer, então quem tem um arroz, um feijão, divide. Se a gente se organizar de forma coletiva, todo mundo come", conta Débora Lima, coordenadora da Cozinha Solidária do MTST.
Segundo dados divulgados no início de abril pela Rede Penssan, mais da metade dos brasileiros conviveram com alguma insegurança alimentar no fim de 2020, e 9% passaram fome - um salto de 28% em relação a 2018. Esse percentual foi maior em lares de pessoas pretas e pardas (10.7%), chefiados por mulheres (11.1%) ou cujos moradores tinham grau de escolaridade até o Ensino Fundamental incompleto (14.7%).
Cortes e política pública
A proposta da cozinha comunitária não é algo novo. Ela já existe como política pública federal, integrando o programa Fome Zero, implantado pela Pasta de Desenvolvimento Social e Combate à Fome - extinta no início de 2019. Sua implementação, no entanto, é irregular no território nacional. Segundo o Ministério da Cidadania, há 189 unidades (número de 2020). O órgão também informou à reportagem que "o apoio federal é realizado por meio de editais de seleção pública ou por indicação de emendas parlamentares. A gestão e manutenção para o funcionamento das Cozinhas Comunitárias são de responsabilidade dos gestores locais". Em capitais como Salvador, São Paulo ou Rio, não há nenhuma.
Em Caxias do Sul (RS) existem duas unidades. Tainara Hanke da Rosa, assistente social da Diretoria de Segurança Alimentar e Nutricional da prefeitura, conta no entanto que há mais de cinco anos o município não recebe ajuda federal. Diz que o que foi "salvo" é fruto da persistência de funcionários e da gestão municipal. Ela explica que a cidade já teve seis unidades, e sabe a falta que as quatro extintas fazem. "Cheguei em 2017 e fui a responsável por fazer o desligamento de famílias de cozinhas fechadas. Foi bem doloroso", diz.
"A política foi sofrendo um desmonte ao longo dos anos. O município começou a implantar esses serviços em 2003, e naquela época contava com auxílio do governo federal para equipamentos, um programa de alimentos mais robusto de agricultura familiar", conta ela. Hoje, a prefeitura subsidia o espaço, os funcionários, gás e carne. Grãos e massa, por exemplo, vêm do Banco de Alimentos local, por meio de doações.
Na pandemia, essas duas cozinhas passaram de 370 a 500 refeições por dia. Tainara faz o cadastro dos beneficiados. "O que notei é aumento da procura e mudança do perfil. Atendi uma senhora de 62 anos que era caixa de supermercado, foi demitida por ser grupo de risco e não tinha carteira assinada suficiente para se aposentar. Ela nunca precisou do serviço, mas neste momento precisa", conta. "Trabalhar com segurança alimentar é muito desafiador, porque o Brasil mal saiu do mapa da fome e voltou. Me sinto às vezes enxugando gelo. Tem gente que vê isso como um programa muito caro, mas é um investimento."
Rochele Aparecida da Luz, 28, é cadastrada em uma das unidades de Caxias do Sul. Antes da pandemia, ela trabalhava com reciclagem. "O que a gente ganha de Bolsa Família não dá pra comprar hoje botijão de gás e toda a comida. E eles mandam fruta, verdura", diz. Além das refeições, ela recebe uma sacola de hortifrúti que divide com a mãe e os quatro filhos.
Na outra ponta do Brasil, em Manaus (AM), seis cozinhas comunitárias saltaram de 200 refeições diárias para quase 300 na pandemia. Elas são equipamentos do município e não têm verba federal. Assim como as cozinhas de Caxias do Sul, recebem doações de alimentos. Cleonice Freitas, diretora do Departamento de Segurança Alimentar da SEMASC (Secretaria da Mulher, Assistência Social e Cidadania), conta que, além das pessoas cadastradas, eles têm atendido quem vai às unidades em busca de um prato de comida por ordem de chegada. Às 7h, 7h30 já há gente esperando para pegar uma refeição às 11h.
Iniciativas de moradores
Em outros bairros, municípios e estados do país surgem também iniciativas de moradores. Na Ocupação Terra Nossa, em Taquaril, Belo Horizonte (MG), foi com parte do dinheiro do Auxílio Emergencial que Igor Lana equipou sua própria cozinha para atender a vizinhança. Transformou um barraco de madeira em casa de alvenaria. Da janela da cozinha, mostra orgulhoso o pé de abóbora que plantou. Começou com um fogão velho, mas com ajuda de doações conseguiu um eletrodoméstico melhor, assim como duas geladeiras.
No início do ano, chegou a alimentar 350 pessoas por dia. A ocupação tem 400 famílias. Também saía de carro para entregar marmitas. "Agora eu preciso de doações, que caíram", diz. Em março, nem todos os dias ele conseguiu preparar as refeições.
Na região central de São Paulo, um grupo de moradores também tem se organizado para implantar uma cozinha comunitária na Vila Itororó, espaço gerido pela prefeitura. "Não é só gente em situação de rua que está passando fome. No [bairro do] Bixiga tem gente que tem teto, mas não tem o que comer", diz Marco Ribeiro, um dos idealizadores da iniciativa. Diante do agravamento da pandemia em abril, dificultando a implementação do projeto, eles decidiram entregar provisoriamente refeições duas vezes por semana em outros locais no entorno, o Museu Memória do Bixiga e o bar Sol y Sombra. Esperam retomar logo a ideia.
A chef Lucia Sequerra explica que já houve uma cozinha pública na Vila Itororó em 2018. "A gente chegou a servir 200 refeições com xepa às sextas-feiras. Conversávamos com feirantes e eles nos deixavam frutas e verduras separadas", conta ela. Marco explica que a ideia é estabelecer um local onde as pessoas possam fazer uma refeição juntas e onde haja, ainda, espaço para quem quiser preparar um alimento fora do horário mais cheio. Planos para depois da pandemia. No momento, o foco é evitar o contágio e aplacar a fome.
Como ajudar
Cozinhas Solidárias do MTST (Pelo Brasil)
Pelo site https://apoia.se/cozinhasolidaria
Cozinhas Comunitárias de Caxias do Sul (RS)
Pelo site https://www.redebancodealimentos.org.br
Cozinhas Comunitárias de Manaus (AM)
Pelo Fundo Manaus Solidária https://manaussolidaria.manaus.am.gov.br
Projeto Social Igor Lana (BH)
Pela chave Pix 31 998460045.
Informações: https://instagram.com/igorlana2
Bixiga sem Fome (SP)
Por transferência bancária: Pic Pay | Código 380 | Ag. 0001 | Conta 57911825-8 (CPF 344.428.828-00).
Informações: https://www.facebook.com/bixigasemmedo
Pessoas ouvidas na reportagem dizem que o mais complicado é a manutenção da cozinha, em especial as que não recebem nenhum financiamento público. Alguns pontos que podem ajudar quem quer montar uma cozinha comunitária são esses:
- Arrume um espaço amplo, aberto e ventilado
- Monte equipes de revezamento, para garantir a continuidade da ação
- Articule doações de alimentos, formando uma rede e parcerias
- Entenda a região em que você está e as necessidades locais (a rede de Assistência Social ou organizações de bairro podem ajudar)
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