Por que ainda existe tanta gente passando fome? É possível mudar o cenário
Lembra-se do sabor da sua última refeição? Ou então do cheiro do seu prato favorito? Se a memória te faz salivar, saiba que a fome é uma resposta fisiológica do organismo humano, que deriva de um estímulo hormonal do nosso estômago quando está vazio. Mas é bem longe da simplificada explicação da fisiologia humana que está o problema de quem tem fome e não consegue se alimentar.
Enquanto você repousa os olhos sobre este texto, 19 milhões [9% da população] de pessoas no Brasil passam fome e não têm como satisfazer essa necessidade básica, pois estão enquadradas na chamada insegurança alimentar grave. Os dados são da pesquisa Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil, desenvolvida pela Rede Brasileira PENSSAN (Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar).
Os dados do cenário crítico fazem com que o Brasil volte ao Mapa da Fome, do qual havia saído em 2014. Desenvolvido pela ONU, o mapa apresenta mundialmente países em que existe fome e marca como críticos os que têm índice superior a 5% da população.
Mas o que pode ser entendido como fome no mundo, como podemos definir quando uma pessoa está passando fome? Será que existem tipos diferentes de fome? Ecoa conversou com especialistas para entender e explicar esse problema.
O que é fome?
Segundo o IBGE, a fome é quando há insegurança alimentar grave. "O conceito de insegurança alimentar mostra que alguns alimentos podem acabar ou [que a pessoa pode ter que] pular refeições antes de existir a fome de fato", explica Renata Motta, professora de sociologia da Freie Universität - Berlin, que é líder do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia.
E completa: "Segurança alimentar é quando o domicílio tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente, sem comprometer as outras necessidades essenciais".
É justamente essa segurança alimentar que está cada vez mais comprometida nesse momento de pandemia de covid-19. É o que mostra a pesquisa "Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil", organizada pelo grupo liderado por Motta.
"Na pesquisa estudamos como é o consumo de alimentos e a frequência dos que são considerados saudáveis, como carne, ovos, queijos e hortaliças, que tiveram queda de 85%, isso não é a fome propriamente caracterizada, mas é o que falamos sobre a violação do direito à alimentação adequada e a soberania alimentar", explica a pesquisadora.
De acordo com o levantamento realizado entre novembro e dezembro de 2020, cerca de 59% dos domicílios estão vivenciando algum tipo de insegurança alimentar durante a pandemia de covid-19 e parte significativa reduziu o consumo de alimentos importantes para dieta, como a carne (queda de 44%) e as frutas (queda de 41%).
O momento também fez com que os chamados alimentos ultraprocessados tivessem um aumento nos lares brasileiros, muitas vezes tomando o espaço que antes era das comidas saudáveis. "A pessoa não está passando fome, mas está deixando de comer o que antes considerava valoroso e comida de verdade", explica Motta.
O que chega antes da fome?
Como já vimos anteriormente, a fome é caracterizada pela insegurança alimentar grave. Existem níveis diferentes de insegurança alimentar e também pode haver tipos diferentes de fome.
De acordo com o economista Francisco Menezes, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e analista de políticas e programas da ActionAid, a fome adquiriu novas faces ao longo do tempo, mesmo quando não torna pessoas famélicas e cita como exemplo as asserções do pesquisador e escritor Josué de Castro, que se tornou referências nos estudos sobre a fome na metade do século passado e é autor da obra "Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço".
"O autor falava da fome oculta, que é uma deficiência de proteínas e outros nutrientes. No Brasil, esse tipo de fome está se tornando mais predominante. Não é raro encontrar domicílios em que a pobreza é grande e as pessoas estão com fome, não conseguem se alimentar, dentro dessas famílias há pessoas obesas, mas isso não significa que elas estão se alimentando o suficiente", explica Menezes.
"Nas camadas de mais baixa renda a presença do sobrepeso é muito forte, isso está muito explicado por essa má alimentação", completa.
Existem tipos diferentes de fome?
A pedido de Ecoa, a pesquisadora Renata Motta elencou os níveis de insegurança alimentar e suas principais características:
- Insegurança alimentar leve: É quando a preocupação com a fome faz mudar a qualidade da dieta. Há uma incerteza quanto ao acesso de alimentos no futuro. Isso pode levar a que acabe o dinheiro e não dê para comprar alimentos até o fim do mês e faça reduzir a qualidade dos alimentos para não faltar, como por exemplo, comprar alimentos mais baratos e de menor qualidade nutricional.
- Insegurança alimentar moderada: Quando há uma redução quantitativa dos alimentos entre os adultos ou a ruptura nos padrões, como por exemplo, pular refeições, não tomar o café da manhã ou ter que escolher entre o almoço ou a janta. Adultos deixam de comer para deixar que crianças e adolescentes comam.
- Insegurança alimentar grave (fome): é quando isso se estende a todos os membros do domicílio, inclusive as crianças. Isso é a fome.
Mas por que ainda existe fome no mundo?
Enquanto as pessoas sentem fome no Brasil, a produção de alimentos do país marca a casa de toneladas. Mas a resposta para resolver e evitar a fome, não está propriamente na capacidade de produção de um país.
"O problema fundamental são os acessos aos alimentos, inclusive, esse é o problema do Brasil. Temos uma capacidade de produção enorme, somos grandes exportadores de alimentos no mudo, no entanto, existe fome aqui em níveis elevados. Portanto, as desigualdades são a nossa marca de fome", defende Menezes.
O economista lembra que os países mais pobres são os que apresentam o maior índice de fome no Mapa da Fome criado pela ONU e que a extrema pobreza está muito correlacionada às condições de insegurança alimentar grave, que é o que caracteriza a fome.
"No entanto, é preciso considerar casos como o dos EUA. O Censo foi feito no país e lá se constatou que existem 19,5 milhões de pessoas em situação de pobreza extrema e provavelmente passando fome. Um em cada seis norte-americanos está enfrentando situação de fome", comenta.
Dá para resolver o problema da fome?
Para resolver o problema da fome agora e no futuro, é preciso olhar para o passado. Isso é consenso entre os especialistas ouvidos por Ecoa, que defendem que é preciso retomar programas que apresentaram êxito para retirar o Brasil do Mapa da Fome, como o Fome Zero e outras políticas, ainda em atividade, como a transferência de renda do Bolsa Família.
"É preciso retomar a produção de alimentos para consumo doméstico, como tivemos no programa Fome Zero, com a promoção da agricultura familiar que destina sua produção para alimentos. Reforma agrária, aquisição de alimentos para pequena agricultura familiar... todas essas ações favorecem o acesso à alimentação", explica Motta.
Para a pesquisadora, o acesso ao crédito e ao mercado deve ser expandido para os agricultores familiares, pois essa também é uma saída para combater a fome no campo. Motta também defende como saída o reforço de políticas de distribuição de alimentação escolar, restaurantes populares, redução de impostos sobre alimentos da Cesta Básica e aumento do salário mínimo acima da inflação. "Para isso, precisamos ter um sistema tributário que taxe a renda e não o consumo das famílias", defende.
No entanto, alguns sistemas parecem ter retrocedido nesse sentido. O Ministério do Desenvolvimento Agrário, que se especializou na criação da pequena e média agricultura familiar, foi extinto pelo governo Temer em 2016. O governo Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o qual Menezes já presidiu, na sua primeira medida provisória em 2019.
"Os canais de participação social e controle que historicamente construíram junto com os gestores públicos as políticas públicas brasileiras que deram certo foram desmantelados. O caminho do futuro é a reconstrução. Não jogar essa estrutura fora, para que os próximos governantes não comecem do zero, mas, sim, que resgatem esse legado da sociedade civil e dos gestores públicos brasileiros", aponta Motta.
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