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Projeto de estudantes usa caixas de leite para revestir moradias

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Ana Prado

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

21/06/2021 06h00

Em uma visita à comunidade Capão das Antas, em São Carlos, interior paulista, alguns estudantes da USP notaram que as moradias, geralmente feitas de placas de madeira, tinham muitas frestas por onde entravam vento, chuva e até insetos. O grupo resolveu, então, pesquisar soluções sustentáveis para resolver o problema e levar conforto àquelas famílias.

Em sua busca, os alunos descobriram uma iniciativa que usava placas feitas pela junção de embalagens longa vida para reforçar o revestimento interno de casas no sul do país e protegê-las do frio. A ideia foi recebida com entusiasmo.

"Vimos que era possível fazer algo parecido na nossa região. São Carlos é muito quente no verão e muito frio no inverno, e a estrutura das caixinhas permite manter a temperatura estável em todas as estações", explica o estudante de engenharia civil Henrique Elias Buassaly, de 22 anos.

As chamadas embalagens longa vida ou cartonadas, muito usadas para a comercialização de leite e outros produtos, são formadas por camadas de papel cartão, polietileno e alumínio. Juntos, esses materiais criam uma estrutura resistente e uma barreira eficaz contra a entrada de luz, ar, água e microrganismos externos.

O estudante de engenharia civil Henrique Elias Buassaly, de 22 anos, presidente do projeto - Divulgação - Divulgação
O estudante de engenharia civil Henrique Elias Buassaly, de 22 anos, presidente do projeto
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O que muitos não sabem é que essas vantagens não beneficiam apenas os alimentos guardados ali dentro. "Descobrimos que a estrutura de papel cartão garante um revestimento sólido, que não se deforma. As várias camadas de plástico impermeabilizam, então permitem resolver problemas de goteira e da entrada de chuva e vento pelas frestas. Já o efeito térmico vem das camadas de alumínio", explica o estudante.

Foi assim que ele e outros alunos de cursos de engenharia da USP São Carlos criaram o projeto Domus. Os primeiros estudos com as caixas começaram em setembro de 2019, e no fim daquele ano já foram feitos testes nas paredes de uma casa desocupada na comunidade. A diferença de temperatura foi percebida quase imediatamente.

Primeiras aplicações

Com a covid, os planos de revestir outras moradias tiveram que ser adiados. Os estudantes focaram então na organização interna do projeto e na obtenção de embalagens longa vida por meio de doações.

Em outubro de 2020, quando o município estava na fase amarela do Plano São Paulo de controle da pandemia, as atividades junto ao Capão das Antas foram retomadas. Como aquele mês costuma ser um dos mais quentes na região, os revestimentos foram aplicados inicialmente no teto, já que o telhado das casas costuma absorver muito calor e isso eleva a temperatura ambiente.

Projeto de estudantes usa caixas de leite para revestir moradias em São Carlos (SP)  - Divulgação - Divulgação
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"O revestimento da casa inteira leva bastante tempo, então também fizemos isso para conseguir beneficiar mais famílias", conta a estudante de engenharia ambiental Talita Abreu, de 20 anos, diretora de relações públicas do Domus. Entre outubro e dezembro, o trabalho foi feito em nove casas. Segundo o grupo, os telhados tiveram uma redução de 19 graus na temperatura.

Outra melhora, percebida com as primeiras aplicações, foi na iluminação interna das casas. "As placas refletem a luz, então o ambiente fica mais claro e os moradores logo começaram a comentar sobre isso. Como a energia elétrica costuma falhar bastante na comunidade, essa é uma melhora significativa na qualidade de vida das pessoas", nota Henrique, que atua como presidente do projeto.

Um dia de trabalho e recompensas

Hoje, nove estudantes voluntários fazem as aplicações do revestimento. Há ainda outro grupo de tamanho semelhante para ajudar na triagem dos materiais recebidos.

As embalagens, depois de higienizadas, são costuradas em placas grandes e posteriormente fixadas nas casas usando grampeadores de tapeceiro. O processo de revestimento do teto ou das paredes dura em média seis horas. Para fazer uma casa inteira, portanto, seriam necessárias quase 12.

A estudante de engenharia ambiental Talita Abreu, diretora de relações públicas do projeto Domus - Divulgação - Divulgação
A estudante de engenharia ambiental Talita Abreu, diretora de relações públicas do projeto Domus
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"É cansativo, e às vezes temos que fazer alguns 'malabarismos' para conseguir colocar os grampos que vão fixar as placas no lugar certo. Mas o clima é muito bom entre todos. Uma vez, as pessoas da comunidade fizeram um bolo quentinho para nós ao final de um dia de trabalho. Fiquei tão feliz", lembra Talita. Outra situação que deixou os voluntários emocionados foi quando uma moradora pediu uma foto de todos para colocar em sua geladeira. "Ela disse que nós tínhamos mudado a sua vida", completa.

No início de 2021, com a piora na pandemia, os trabalhos foram pausados novamente e só voltaram no começo deste mês, para ajudar os moradores a se protegerem do frio. Cinco casas já foram revestidas. Para garantir a segurança de todos, o grupo adotou cuidados extras: reduziu o número de voluntários por casa e só usa máscaras do modelo PFF2, que oferece maior proteção.

Trabalho de conscientização

Apesar de serem totalmente recicláveis, apenas 26% do total de embalagens longa vida foram de fato recicladas no mundo em 2019, segundo o Relatório de Sustentabilidade de 2020 da Tetra Pak, uma das maiores fornecedoras do mundo desse tipo de material.

O fato chamou a atenção dos estudantes, que viram aí uma oportunidade de mudar esse cenário. "Um dos grandes problemas é que muita gente descarta as caixas com restos do alimento que havia lá dentro. Isso inviabiliza a reciclagem", explica Henrique. Por isso, o grupo tem procurado educar as pessoas para doarem os materiais já limpos e cortados, tanto por meio de cartazes nos pontos de coleta quanto por meio das redes sociais.

As doações vêm de pessoas físicas e instituições. "Uma das nossas parcerias é com uma casa de repouso que costuma mandar entre 200 e 500 embalagens por mês. Isso já é praticamente meia moradia", conta ele, que estima já ter usado cerca de 12 mil até agora.

Concurso internacional

Os bons resultados ajudaram o projeto Domus a se tornar um dos 12 finalistas do Race for Climate Action, um concurso internacional que incentiva estudantes a criarem soluções que gerem um impacto positivo e sustentável no mundo. Ao todo, 174 projetos de 23 países estavam inscritos.

O vencedor será conhecido no fim do ano e levará um prêmio em dinheiro para permitir que a ideia ganhe escala. Os brasileiros estão confiantes. "Essa é uma tecnologia muito simples e barata e recebemos elogios dos jurados dizendo que dá para replicar tranquilamente em outros lugares", conta Henrique.

Com ou sem o prêmio, o plano é de fato levar os revestimentos para outros lugares. "Já vimos que, até o ano que vem, é possível conseguir parcerias para chegar a todas as cinco regiões brasileiras."