Boliviano mobiliza brasileiros a doar sangue e ajuda hospitais na pandemia
Morando na casa dos sogros durante a pandemia, entre as cidades baianas Jacobina e Miguel Calmon, Alfredo Quiroz precisou percorrer 60 quilômetros até estar próximo à antena de uma operadora de celular para conversar com a reportagem de Ecoa. Chegando lá, acomodou-se debaixo da sombra de uma árvore para contar os desafios diários que enfrenta para cumprir sua missão de vida: inspirar brasileiros a serem doadores de sangue. Como ele é há anos.
Em nome do sobrinho
Tudo começou quando o sobrinho de Alfredo chamou a família no quarto do Hospital Sírio-libanês, onde estava internado. Carlos tinha conseguido vencer a leucemia, mas não a pneumonia que desenvolveu por conta da imunidade baixa. Assim que os parentes chegaram, o adolescente de 14 anos propôs dois pactos. O primeiro era para que um dia todos se reencontrassem no céu. O segundo surpreendeu Alfredo. "Quero que vocês continuem mobilizando pessoas para salvar vidas com doação de sangue". Uma ideia que surgiu durante o tempo em que observou o esforço da família em conseguir sangue para ele.
Uma semana depois, Carlos foi colocado em coma induzido e viveu nesse estado por três meses até morrer. O professor de espanhol ficou comovido ao ouvir o último desejo do sobrinho. Mas antes disso, já era sensível às causas sociais. A empatia foi uma das lições mais marcantes da infância de Alfredo, passada uma parte passada na Bolívia, seu país natal, e outra no Brasil. Era comum ele acompanhar os pais à favela de Paraisópolis, em São Paulo, quando o casal doava alimentos para os moradores e levava médicos e dentistas para atendê-los.
Quando cresceu, Alfredo seguiu o exemplo dos pais. Mas seu chamado era outro. Tinha 22 anos quando doou sangue pela primeira vez e continuava indo de vez em quando, sempre acompanhado de amigos. Mas só entendeu a importância desse gesto anos depois, vendo a situação do sobrinho. "Pude sentir isso na pele. É uma atitude mais profunda e de mais amor do que eu pensava. Daí para frente nunca mais parei de doar", lembra. Aos 56 anos, ele já doou sangue 308 vezes, todas anotadas num caderno. Tem várias cicatrizes internas no braço causadas por tantos furos de agulha.
Sem medo dos obstáculos
Alfredo ainda demorou cinco anos para cumprir a promessa feita a Carlos. Em uma de suas idas ao Hospital Sírio-Libanês para doar sangue, ele ouviu da esposa que era hora de fazer algo maior e mais organizado. Com o incentivo ele criou, em 2004, o Clube de Doadores ADV, um projeto que começou pequeno, com 15 doadores fixos. Para isso, o professor de espanhol fez contato com bancos de sangue de todo o Estado de São Paulo e convocou líderes de células, como ele chama - pessoas que fazem parte de lugares como empresas, igrejas e faculdades - para serem responsáveis por grupos de doadores em suas cidades.
Extremamente organizado, Alfredo administra tudo. Vive conectado ao WhatsApp 24 horas por dia, recebendo contato de pacientes, dos bancos de sangue dos hospitais e dos líderes das células. Cabe a ele receber os pedidos, agendar o dia das doações e providenciar transporte para os grupos, sempre de 15 doadores, e passar as informações para os líderes. Quando não está dando aulas de espanhol para executivos, dedica todo o seu tempo ao projeto. Mas vive com a sensação de que pode fazer mais. Até porque, segundo o Ministério da Saúde, apenas 1,8% dos brasileiros são doadores de sangue.
Com 17 anos de existência, o clube colhe os frutos da persistência de Alfredo e dos colaboradores que fazem todo o trabalho de forma voluntária. Hoje conta com 10650 doadores ativos. Entre março do ano passado e abril desse ano foram quase 8 mil doações, suficientes para 31728 pessoas. Mas até chegar a esse ponto, trabalhou incansavelmente. "Nada na minha vida foi fácil. Tive que ir muito atrás, sem perder o ânimo, tirando as dificuldades da frente até conseguir", afirma.
A primeira barreira que Alfredo precisou derrubar nessa jornada foi o trauma de agulha, que ele desenvolveu aos três anos, quando sofreu um choque anafilático. "Cada vez que eu via a agulha sendo preparada para ser colocada na minha veia, o momento antes da injeção que gerou o choque anafilático passava na minha cabeça. Percebi que eu tinha que trabalhar permanentemente para não desanimar da minha ideia de salvar vidas", confessa. Para tornar o medo suportável, o professor de espanhol faz o exercício de pensar que com uma única doação ele pode salvar quatro vidas.
O desafio da pandemia
A pandemia trouxe dificuldades com as quais Alfredo ainda não tinha se deparado, como o medo dos familiares dos doadores de que eles contraíssem o novo coronavírus. Isso fez com que o número de doações caísse no início da crise sanitária. Para contornar o problema, o professor de espanhol reduziu o tamanho dos grupos para quatro pessoas, passou a agendar o horário das doações para evitar aglomerações e frisou a importância do uso de máscara e álcool em gel. Mas o transporte feito por carros de aplicativos, que passou a substituir as vans, era caro e a organização não estava conseguindo bancar as despesas.
Por outro lado, Alfredo ficou surpreso com os doadores que continuaram, com outros que chegaram ao saber da situação crítica nos bancos de sangue e com o aumento das doações em dinheiro. Resultado. Nesse período, em que o Ministério da Saúde tem observado uma queda de aproximadamente 20% nas doações, o Clube de Doadores ADV ultrapassou a marca de 20 mil pessoas atendidas, registrada nos anos anteriores, para 30 mil durante a pandemia.
Isso com a ajuda de parceiros que reforçaram essa corrente durante a crise: ciclistas da organização Seven Bikers, que formaram grupos em outras regiões do país, como Goiânia, Distrito Federal e Xinguara, no Pará. Com o tempo, os doadores perceberam que os hospitais não eram centros de covid e se sentiram seguros, já que nenhum foi infectado durante a pandemia. Então, os grupos voltaram a ter 15 pessoas e o transporte por vans alugadas trouxe um alívio econômico para o clube.
À primeira vista Alfredo parece ser uma fortaleza, por gerenciar o trabalho sozinho. Mas ele tem um lado frágil. Evita ter uma proximidade com as famílias dos pacientes, já que sofre quando fica sabendo que algum deles não resistiu. Ainda assim, toda semana recebe mensagens de agradecimento pelas redes sociais. "A emoção que senti na época do meu sobrinho volta a ser vivida", diz. As palavras de pacientes e familiares são um combustível para ele continuar, cada vez com mais vontade.
Não é porque o clube existe há muito tempo e conta com milhares de doadores que Alfredo relaxa no trabalho. Ele diz que os doadores precisam ser envolvidos o tempo todo. "Como a Coca-Cola, a doação de sangue precisa ser sempre lembrada. Não como uma campanha, e sim como um projeto permanente em prol da vida. Sem data para terminar", enfatiza. De sua parte, a missão do professor de espanhol procura convencer as pessoas do sentido que ajudar desconhecidos traz para a vida. E de como essa ajuda é necessária, principalmente num momento caótico como esse.
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