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Casal de oceanógrafos e pescadores transformam redes de plástico em bolsas

Da esquerda para a direita: Beatriz Mattiuzzo, Seu Filinho, dona Edimeia e Lucas Gonçalves - Arquivo Pessoal
Da esquerda para a direita: Beatriz Mattiuzzo, Seu Filinho, dona Edimeia e Lucas Gonçalves Imagem: Arquivo Pessoal

Paula Rodrigues

de Ecoa, em São Paulo (SP)

24/06/2021 06h00

A Baía de Ilha Grande tem 187 ilhas e ilhotas. O arquipélago faz jus ao nome — é o maior do estado do Rio de Janeiro - e Ilha Grande, a principal, é a 6° maior ilha do país. Muitas das quase 9.500 pessoas que vivem por lá dependem da pesca — especialmente de sardinha — e do turismo para ganhar dinheiro.

É ali, na comunidade de Matariz, que um casal está há um ano trabalhando junto a pescadores locais para tentar dar outro fim às redes descartadas após a pescaria que costumam ir para o fundo do mar, prejudicando cerca de 25 milhões de animais marinhos por ano no Brasil, o que significa 69 mil animais mortos ou machucados por dia, segundo o relatório "Maré Fantasma - Situação atual, desafios e soluções para a pesca fantasma no Brasil", de 2018.

Beatriz Mattiuzzo e Lucas Gonçalves se conheceram quando estudavam Oceanografia na Universidade de São Paulo (USP). No verão de 2018 para 2019, a Bia recebeu uma proposta de trabalho temporário como instrutora de mergulho em Ilha Grande. Os dois mudaram de vez para lá em julho de 2020.

Redeco - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A Redeco é uma bolsa feita de rede de pesca pela Marulho, empresa de dois oceanógrafos em Ilha Grande (RJ)
Imagem: Arquivo Pessoal
"Por causa da pandemia, o turismo parou aqui, então foi um momento que a gente sabia que o pessoal estava em uma situação delicada de grana", conta a Bia. Assim, pensaram que era hora de mudar de vez para Matariz e apostar na Marulho, uma plataforma online que o casal criou para compartilhar informações sobre o mar e a cultura caiçara, além de criarem uma loja para comercializar sacolas feitas de restos de rede pelas mãos de ex-pescadores.

A pesca fantasma

A ideia de dar um novo fim às redes de pesca surgiu antes mesmo da mudança. Quando ainda estavam conhecendo a região, se depararam com pilhas de redes jogadas em terra firme e no mar. "Essas redes são feitas de um tipo de plástico, que demora muito para se decompor. E aqui não existe reciclagem delas, na melhor das opções vão parar em um aterro sanitário", conta Lucas.

Em todo Brasil, 640 mil apetrechos de pesca (como redes, linhas e anzóis) são descartadas no mar por ano, de acordo com o estudo da Organização Proteção Animal Mundial. São 580 kg de redes jogadas ou deixadas na água por dia.

Quando isso acontece, os prejuízos são muitos. A começar pela chamada pesca fantasma, que ocorre quando as redes jogadas no oceano começam a "pescar" animais marinhos que ficam presas a elas, o que pode causar ferimentos ao bicho e até mesmo a morte. Em uma postagem nas redes sociais, eles mostram uma foto de uma dessas redes que retiraram na praia de Jaconema. Emaranhada nela, cinco espécies diferentes de animais marinhos tinham morrido.

Mas atribuir toda a responsabilidade aos pescadores por esse resíduo nunca foi uma opção para o casal. Afinal, é um material pesado, de difícil descarte. Para eles, buscar uma solução teria que passar por um trabalho junto à população local - comunidades tradicionais que já vem enfrentando desafios com a perda de território e de suas tradições nas últimas décadas.

Pensando nos prejuízos causados ao meio ambiente e, consecutivamente, às pessoas, os oceanógrafos tiveram a ideia de fazer algum projeto que não resolveria o problema todo, mas ajudaria a diminuí-lo. Eles, que já buscavam uma alternativa para não precisar mais usar sacolas de plástico, tiveram a ideia de criar um tipo de bolsa com as redes que pudessem servir para carregar compras, os pertences, entre outras coisas do dia a dia.

Logo chegaram à conclusão de que ninguém melhor que um redeiro para ajudá-los nisso. Redeiros são as pessoas que costuram as redes de pesca. E não usam máquina alguma para isso além das mãos. É da união de uma agulha com o tecido e o saber aprendido há tempos por esses homens de Ilha Grande que nasce um novo fim para as redes que não tem mais uso. "Ninguém entendia muito o que a gente queria fazer, éramos dois malucos falando 'faz um saquinho pra mim'", Bia ri ao lembrar.

Redeco - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Costurando redes

Depois de ouvir muitos "nãos", o primeiro "sim" veio de um redeiro de 85 anos. Honorato Gonçalves de Castro, ou Seu Filinho, virou pescador aos 13 anos de idade. Foi ele quem passou três meses pensando e criando a Redeco, nome que eles deram para a sacola-bolsa feita de restos de rede.

"A primeira etapa é recolher as redes. Depois, fazemos a primeira higienização com cloro e entregamos para os redeiros que recortam, costuram as laterais, fazem as alças, dão o nó final e checam pra ver se está tudo certo. Então, em um dia eles só recortam, no outro só costuram, e por aí vai", conta Lucas que estima que um redeiro consegue fazer entre 12 a 20 Redecos por dia. Até então eles calculam que cerca de quatro mil Redecos foram vendidas.

Esse foi o padrão e o processo de criação da Redeco estabelecidos desde o começo que eles seguem até hoje. Por um ano só o Seu Filinho sabia fazer. Mas logo mais redeiros foram entrando nessa e aprendendo a costurar as redes. Hoje Seu Filinho, Décio Silva Santos (Seu Madruga), seu Paulo Honorato Maia, Aprígio Ferreira Filho (Benzinho), Francisco dos Santos, Guilmaro dos Santos (Doutor), Jose Antonio Ferreira Martins (Zé do Joari), Guilmaro dos Santos (Doutor), Francisco dos Santos (Chico), Benedito Leopoldino Junior (Dito) e Danielle Maia dos Santos trabalham nas horas vagas costurando as Redecos com o mesmo material que os acompanhou pelo mar por muitos anos. A Bia e o Lucas contam as histórias deles em postagens no Instagram da Marulho.

"Nós, como oceanógrafos que passaram cinco anos estudando na faculdade sobre oceanos, ainda não tínhamos contato intenso com o mar e as pessoas que dependem diretamente dele. A gente entende que o que esses homens fazem é muito especial porque é todo um saber tradicional envolvido. As histórias de cada um são muito marcantes e conforme eles iam contando pra gente crescia uma vontade de compartilhar esses aprendizados com mais gente", diz Bia.