Há 43 anos, MNU nascia para unificar a luta contra o racismo no Brasil
Era 1978, em um 7 de julho como hoje. No final da tarde, várias pessoas negras podiam ser vistas caminhando pelo centro de São Paulo (SP). Todas marchando com destino às escadarias do Theatro Municipal. Ali pararam, ergueram os cartazes, os punhos e as vozes. Juntos construíram o que chamaram de Ato Público Contra o Racismo.
O ato foi organizado por um grupo de jovens que, em plena ditadura militar (1964-1985), se reuniram para dar um fim ao silêncio e denunciar o racismo diário que pessoas negras viviam no Brasil.
Hoje, passados 43 anos, a manifestação é considerada histórica por ser uma das maiores contra o racismo na época e por ter apresentado para a sociedade brasileira o Movimento Negro Unificado (MNU), criado para contribuir para que o debate racial — iniciado por movimentos anteriores, como a Frente Negra — ressurgisse publicamente.
"Não podemos mais calar"
Tempos antes, no dia 18 de junho daquele ano, representantes de algumas organizações de artistas, atletas e intelectuais negros se reuniam no Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), em São Paulo. Saíram de lá todos estruturados em um só: o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (Mucdr), que tinha como objetivo unir negros e negras de todo o país em torno da luta contra o racismo e a promoção da cultura e história negra no Brasil.
"A gente chamou todos para discutir a questão porque a juventude estava com raiva naquele período. A gente estava com raiva por causa da morte de mais um preto. A pergunta que ficava era: 'E agora? Assassinaram mais um jovem negro, o que a gente vai fazer?'", conta José Adão, co-fundador do Movimento Negro Unificado.
A morte citada foi a de Robson Silveira da Luz, um homem negro de 21 anos morto por agentes de segurança da 14ª Delegacia de Polícia da Capital, no mês de maio de 1978. Além desse assassinato, gerava revolta a discriminação sofrida por quatro garotos negros no Clube de Regatas Tietê.
Em uma carta produzida durante a reunião no Cecan, os integrantes do recém-nascido MNU diziam que tinham o criado para defender a comunidade negra "contra a exploração racial e desrespeito humano a que a Comunidade é submetida".
"Não podemos mais calar. A discriminação racial é um fato marcante na sociedade brasileira, que barra o desenvolvimento da Comunidade Afro-Brasileira, destroi a alma do homem negro e sua capacidade de realização como ser humano."
Trecho da carta de criação do Movimento Negro Unificado
7 de julho
A carta escrita naquele dia, na verdade, era um chamado, uma convocação para que as pessoas fossem às ruas do centro de São Paulo no dia 7 de julho de 1978 para protestar contra os acontecimentos anteriores. "Marcamos a data para lançar o movimento em praça pública. Passamos a distribuir a convocatória nos bailes black, na rua, nos nossos grupos. A gente se reuniu na Rua da Consolação, compusemos as faixas e descemos para o centro", conta José Adão.
No 7 de julho, a movimentação na região central de São Paulo (SP) começou a crescer ao final do dia. Até que cerca 2 mil pessoas brancas e negras se uniram nas escadarias do Theatro Municipal para cobrar melhores condições de vida para o povo negro. Foi entre discursos de lideranças de movimentos negros brasileiros que apresentaram o MNU para o público.
Grandes nomes estiveram por lá, como a professora, filósofa, antropóloga, política e escritora Lélia Gonzalez. Sobre o clima do ato, Lélia descreveu sentir uma espécie de vertigem, de tanta emoção que era sentida por todos por causa dos discursos e dos esforços de pessoas negras e brancas em unir forças naquele momento, como descreve no livro "Lugar de Negro":
"Estávamos lá, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Muita atividade (distribuição da carta aberta à população, colocação de cartazes, faixas etc.), muita alegria, muita emoção. As moções de apoio chegavam e eram lidas com voz forte e segura. A multidão aplaudia. Como aplaudia os discursos que se sucediam", Lélia escreveu.
Vale lembrar que isso tudo durante a ditadura militar, quando ainda estavam proibidas até mesmo reuniões, quem dirá manifestações como essa. Não à toa é possível encontrar registros de fotos, como a publicada no livro "Movimento Negro Unificado - A resistência nas ruas", tirada por alguém infiltrado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), de São Paulo, em uma reunião do grupo.
"Mas nós conseguimos uma autorização para nos manifestar. E, durante o ato, acho que os militares se arrependeram (risos). Alguns começaram a xingar a gente, mas tínhamos feito um acordo de segurar as mãos um do outros e não reagir para não dar pretexto", conta Adão. Na carta de apresentação do movimento distribuída e lida em voz alta para a população que lá estava, o MNU denunciava o desemprego, a falta de assistência médica, de escolas e de proteção das pessoas negras no Brasil.
Depois daquele ato
Para pensar nos próximos passos, o MNU convocou a primeira assembleia para estruturar o movimento. Onde discutiram quais caminhos seriam tomados. Algumas pautas foram estabelecidas: "reparação histórica, mais oportunidade de emprego, o fim das violências contra o nosso povo, valorização da nossa cultura", lembra Adão.
Ele conta que já no dia 23 de julho, realizaram uma primeira assembleia para avaliar o ato e decidir quais seriam os próximos caminhos. Foi também nessa ocasião que o movimento, a pedidos de Abdias do Nascimento, "para assegurar o protagonismo do negro nessa nova organização", como diz José Adão, adotou finalmente o nome "Movimento Negro Unificado", de apelido MNU.
Com apoio em diversas partes do Brasil, o MNU se espalhou por alguns estados como Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul. Em Salvador, por exemplo, uma assembleia do movimento decidiu adotar a comemoração da Consciência Negra no dia 20 de novembro, como propunha o grupo Palmares, do Rio Grande do Sul, no início da década de 1970.
Foram muitas as reinvindicações do MNU ao longo das últimas décadas: fim das torturas e prisões injustas, políticas de cotas raciais, uma educação antirracista, a proposta de criminalizar o racismo e a posse de terras para quilombolas, que surgiu na Conferência Nacional do Negro, em 1986.
Em uma lembrança mais recente, membros do movimento foram celebrados no mesmo Theatro Municipal, onde há 43 anos organizaram o Ato Público Contra o Racismo, só que dessa vez, para assistir ao show do rapper paulistano Emicida, que junto com a plateia cheia do teatro, os celebrou assim:
"Algumas pessoas, no auge da ditadura militar, tiveram a coragem de se levantar contra o Estado brasileiro e seu racismo assassino, e dizer que aquele país precisava reconhecer o protagonismo das pessoas de pele escura na sociedade brasileira. (...) Muito obrigado, sem o sonhos de vocês, sem a luta de vocês, nada disso seria possível."
Trecho da fala do rapper sobre o MNU no documentário "AmarElo - É tudo para ontem"
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