Zoo que salva: peixes-bois e outros animais amazônicos são resgatados
Bicó passava ao lado de um brete, jaula usada para prender o gado, na comunidade de Pixuna do Tapará, nos arredores de Santarém (PA), quando percebeu que havia algo diferente ali. Era início de junho, e a cheia do rio havia aberto passagem para que um filhote de peixe-boi Amazônico ficasse preso à estrutura.
Com 12 quilos, e 93 centímetros, o pequeno agonizava, preso, ferido e sem a mãe. Bicó não podia liberar. Mesmo se não houvesse um corte próximo à nadadeira esquerda, aquele mamífero de dois meses pouco faria sem a mãe. Conservacionista, acostumado com o trabalho de manejo de quelônios e pirarucus, foi buscar ajuda.
Logo, representantes da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SEMMA) de Santarém aportaram na comunidade ribeirinha acompanhados do médico veterinário Jairo Moura, do Zoológico da Universidade da Amazônia (ZooUnama). O resgate foi um sucesso e, no mesmo dia, o pequeno peixe-boi da Amazônia estava nadando nas piscinas da instituição que, apesar do nome, trabalha para que os animais se vejam livres de qualquer amarra, saudáveis, reintegrados à vida selvagem.
Bicó, batizado em homenagem a seu salvador, já é o sexto peixe-boi da Amazônia resgatado em 2021. "Se ele fica separado da mãe, sem o leite, como qualquer mamífero, vai ter óbito. Então as pessoas encontram, efetuam contato com o órgão ambiental, e nós fazemos o resgate", conta o veterinário. "Às vezes, o cidadão que matou o adulto é o mesmo que, quando encontra o filhote - aquela coisa pequenininha - fica com compaixão, e faz contato com o órgão ambiental."
Projeto Peixe-Boi
O peixe-boi pertence a um grupo de mamíferos herbívoros que compartilham de um ancestral comum com os elefantes. Cerca de 55 milhões de anos atrás, esses animais deixaram a terra firme em algum ponto da Europa para viver nos oceanos. Vinte milhões de anos depois, o peixe-boi marinho chegou à costa da América do Sul.
Apesar de viver em águas salgadas, o marinho (Trichechus manatus) depende de água doce para sobreviver. A cada dez dias adentra as regiões de estuário de rios para matar a sede. Em geral, ficam três dias e retornam. Porém, há cerca de 5 milhões de anos, um grupo adentrou a bacia do Amazonas e resolveu ficar. A evolução cuidou do resto e deu origem ao único de seu tipo que vive exclusivamente na água doce: o peixe-boi da Amazônia (Trichechus inunguis).
O animal se adaptou a passar despercebido pelas águas turvas dos rios amazônicos. De cor escura - o seu primo marinho é cinza claro -, passa a maior parte do tempo submerso, comendo ou dormindo. Seus sons não podem ser captados pelo ouvido humano. Visita a superfície a cada dez minutos para respirar. Apenas quatro segundos são suficientes e ele deixa somente as narinas de fora d'água. Na hora do sono, a apnéia pode chegar a 25 minutos.
"A função ecológica do peixe-boi da Amazônia é controlar a população de plantas aquáticas. Na fase adulta, chega a comer até 14% do seu peso. É muito se você considerar que no ser humano, o máximo que comemos é 2%", explica Moura."Se come muito, defeca muito, e fornece nutrientes para as plantas aquáticas e diversos microorganismos que alimentam outros animais", continua. "O peixe-boi contribui para que outros seres que estão dentro do ambiente aquático sobrevivam."
A contribuição, porém, começou a rarear à medida que a invasão europeia adentrou a floresta. Apesar de ser bem menor que seu parente marinho, os 450 quilos de um adulto, recheados de carne suculenta e gordura, resultam em um farto jantar. Até o final do século 19, seu couro também era bastante requisitado. Como resultado, assim como todos os peixes-boi, hoje o peixe-boi da Amazônia é protegido pela legislação, pois corre risco de extinção.
Começo a jornada...
A amamentação dos peixes-boi Amazônicos se estende por dois anos. Na ausência da mãe, a equipe do ZooUnama precisa cumprir esse papel. São quatro mamadeiras por dia. Leite em pó integral, suplemento alimentar e óleo de canola - por ser mais calórico que o de soja ou milho.
Mas ainda não é suficiente. Sem o colostro do leite materno, com substâncias que ajudam a formar o sistema imunológico, as defesas são frágeis. Para evitar contaminação, a água dos tanques em que vivem são trocadas duas vezes por dia. Além da inclusão de plantas aquáticas coletadas em um lago próximo, para que comecem a se acostumar com a futura alimentação.
Conforme cresce, é transferido para piscinas cada vez maiores, com mais plantas aquáticas. Perto dos dois anos de idade, começa o desmame. Menos mamadeiras e mais plantas. Terminado o processo, começa a readaptação. Essa, no entanto, fica a três horas de barco do zoológico, na comunidade de Igarapé da Costa, na região dos rios, em Santarém.
Tanques flutuantes, com 100 m² e 2,5 metros de profundidade, instalados no rio Amazonas, para que os peixes-bois se acostumem com sua água. Neles, ainda precisam ser alimentados com as plantas aquáticas colhidas na região ao longo de 3,5 anos. Até que seu sistema imunológico esteja forte o bastante, em sua maturidade reprodutiva, pronto para ajudar a repovoar as águas da bacia amazônica.
Uma jornada que, quase seis anos após o resgate, ainda não terminou. Mesmo libertos, carregam um rádio transmissor acoplado a uma cinta na cauda. Com ele, pesquisadores podem acompanhar o restante de sua existência, que pode chegar até aos 60 anos.
... sem fim
Além de tempo, todo esse trabalho custa muito dinheiro. Até hoje, apenas quatro peixes-bois amazônicos percorreram todas as etapas do processo de reintegração, soltos em 2019. "Hoje, no tanque flutuante, temos doze animais aptos para serem soltos, mas nós ainda não conseguimos adquirir os rádios. É um preço salgado."
Afinal, além deles, outros 30 peixes-boi estão sob cuidados no ZooUnam, assim como centenas de indivíduos de outras 50 espécies de animais, como jaguatiricas, cachorros-do-mato, jabutis, papagaios, araras e onças. Todos integrantes da fauna amazônica que, assim como Bicó, tiveram a infelicidade de cruzar com o ser humano. Para cada, um longo, meticuloso e incerto processo para que os animais resgatados possam, ou não, retornarem à natureza.
"Uma preguiça que chega filhote. Dois, três anos depois, quando estiver totalmente independente, aprendeu a se defender? É inviável fazer a soltura em um ambiente natural. Já a jaguatirica, um felino, conseguimos exercitar o instinto de caça. Cada caso é um caso."
"São todos um patrimônio genético de nosso país", conclui. "
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