Tá frio? Entenda relação entre aquecimento do planeta e sensação térmica
Na madrugada desta segunda-feira termômetros de todo Brasil encostaram no zero, mas a sensação era de que a coisa estava mais fria ainda. A culpada é a famosa e, pouco explicada, sensação térmica. Sensação térmica?! Calma, para explicar, vamos a um exemplo do mês passado:
Por volta das 8h30 da manhã de 29 de junho, os termômetros da cidade gaúcha de Cambará do Sul registraram a temperatura de -0,6º. É frio, mas nem tanto, os números dizem. Localizada acima dos mil metros de altitude, temperaturas negativas não são raras na região, que já chegou a registrar -8ºC. Mas tenta explicar isso para quem amanheceu ali naquela terça-feira, com uma sensação térmica estimada em -22,8º.
Entender a razão de tamanha diferença, e por que isso aconteceu, passa pelo funcionamento do nosso organismo e a soma da ação de todos os organismos humanos no planeta Terra. Cambará do Sul vai nos ajudar o frio todo que você sentiu e vai sentir essa semana. E o que ele tem a ver com a crise climática.
O que é sensação térmica?
Começo pelo individual, e o trabalho do corpo para manter uma temperatura média de 36,5ºC. Quando suamos, a maior parte dessa umidade evapora e cria uma fina camada de ar mais frio imediatamente sobre a pele, que ajuda a baixar a temperatura.
Por isso, o tanto de frio ou calor que sentimos não depende somente do número marcado no termômetro. A umidade faz a diferença. Quanto mais seco o ambiente, mais eficaz esse mecanismo. Quem vai atravessar um deserto opta por roupas escuras e pesadas pois evitam a evaporação rápida do suor, e otimizam o sistema.
Já quando o ar está muito úmido, o suor não evapora, e a estratégia de resfriamento para de funcionar. No frio também para, mas nesse caso é bom. Sem suar, o calor do corpo aquece essa camada de ar. Nos sentimos aquecidos com roupas de frio pois elas retém nosso próprio calor.
Aí entra outro fator. O vento rompe essa camada de ar sobre a pele. No calor, o vento acelera a evaporação do suor e nos sentimos refrescados. Quando está frio, porém, o mesmo vento carrega para longe todo o suor do nosso corpo e sentimos ainda mais frio.
As três condições se encontraram para derrubar a sensação térmica em Cambará do Sul, mês passado
Por que acontece?
Durante o inverno do hemisfério sul, o sol quase inexistente na Antártida esfria o ar. Todo vapor vira neve, formando grandes massas de ar que invadem a América do Sul nesta época do ano. Mais próximo da linha do Equador, porém, o calor do sol segue a toda potência. Com o clima úmido da região amazônica, o ar que vem de lá segue para o sul quente e carregado de vapor d' água.
Quando essas duas massas se encontram, o ar esfria e o vapor provoca aquela sequência de dias frios e chuvosos tradicionais de quem vive no Sul e Sudeste do Brasil. Entre os dias 28 e 29 de junho, esse encontro foi mais intenso que o normal.
O choque provocou uma tempestade subtropical, um gigantesco ciclone, no litoral do Uruguai, que fez ventar por todo sul e sudeste do Brasil. Em Carambá do Sul, as rajadas chegaram a 55 km/h às 8h30, do dia 29 de junho.
"É a umidade, estúpido"
Bom, vamos seguir analisando a friaca de Cambará do Sul, para entender a sensação térmica: o vento encontrou um ambiente predominantemente seco. Choveu muito pouco no primeiro semestre do ano em todo o Brasil, como demonstra a bandeira vermelha que encarece a conta da energia elétrica. Com boa parte do reservatório hídrico do interior do continente desabastecido, menos vapor d'água sobe para a atmosfera.
A influência da umidade não se restringe a sensação térmica. A presença de gotículas de água na atmosfera limita a amplitude térmica. A água absorve e perde calor de forma mais lenta que o solo. Isso explica desertos extremamente quentes durante o dia com temperaturas negativas à noite. Não há umidade para segurar o calor.
A estiagem que atinge o país, e no Rio Grande do Sul já dura desde novembro de 2019, tem sua causa relacionada com um fenômeno que acontece lá no Oceano Pacífico, chamado de La Niña. O resfriamento anormal da água acaba interferindo em toda a circulação atmosférica do continente. Os efeitos, porém, variam de acordo com outras interferências, em um complexo quebra-cabeças. Mesmo os mais avançados modelos climáticos têm dificuldades de mensurar todas as variáveis, que incluem até a temperatura do Oceano Índico.
"Dizer que esse evento específico deste ano tem a ver com mudança do clima, é muito difícil pela escala de tempo muito curta", afirma Paulo Moutinho, do IPAM. "Mas o que a gente já pode dizer com toda a certeza é, se nós continuarmos na mesma toada, de emissão de gases de efeito estufa e desmatamento da Amazônia, esses eventos extremos serão mais frequentes no futuro."
Qual relação com a crise climática?
A vegetação poderia amenizar a situação. "A floresta, como a gente, transpira. Joga vapor de água para a atmosfera, que esfria, forma nuvens e precipitação. É um grande ar condicionado", explica Moutinho. "Quando retira a massa florestal, tem a exposição de solo. Mesmo em uma plantação, aumenta muito a temperatura e aquece a massa de água logo acima. Isso faz com que haja mudança em regime local e regional de chuva, que não teria se mantivesse a floresta."
Em períodos de estiagem, as árvores buscam água nos reservatórios subterrâneos e bombeiam para a atmosfera. Talvez a experiência dos moradores de Cambará do Sul não tivesse sido tão dramática caso a vegetação da região não fosse retalhada por propriedades rurais.
Com maior umidade, reduz a amplitude térmica e, assim, mitiga a gravidade de eventos extremos. O contrário também é verdadeiro, como ensina a região do Xingu, no Mato Grosso, ao sul da bacia amazônica.
"A temperatura subiu mais de meio grau nos últimos 10 ou 15 anos. Parece pouco, mas já é suficiente para perturbar todo sistema hídrico da região. A gente já tem no Xingu um atraso de duas semanas na chuva. Isso causa um prejuízo enorme, por exemplo, para a produção agrícola."
O ar aquecido pelo solo nu é menos denso, e sobe. Quando o calor é muito intenso, forma uma espécie de parede de ar quente que barra a umidade. As consequências não se restringem à região.
Como a Floresta Amazônica influencia no frio que você sente?
Paulo Moutinho chama a maior floresta tropical do planeta de oceano verde, pois, assim como o Atlântico manda chuva para o litoral, são as árvores da região Amazônica que mandam água para dentro do continente.
"A floresta consegue bombear a umidade de leste para oeste. Até bater lá nos Andes, e fazer um grande corredor de umidade que desce até a bacia do Prata, entre Uruguai e Argentina."
São os chamados rios voadores, que fazem chover no Centro-Oeste, Sul e Sudeste e abastecem grande parte das bacias hídricas do País. O desmatamento, como no Xingu, cria buracos nesse mecanismo, intensificado na medida da destruição da floresta. Atualmente, quase 20% da floresta amazônica já foi destruída. Estudos indicam que se esse número chegar a 25%, todo o sistema entra em colapso.
Sem contar as mudanças climáticas. O La Ninã é um dos fenômenos intensificados pelo aumento médio de 1,3ºC na temperatura média do planeta desde 1850. Embora seja difícil prever as consequências em todo o território, alguns padrões se repetem, como a estiagem no sudoeste da Amazônia, onde fica o Xingu.
"A mudança do clima é agora. Alguns ensaios de análise de dados que fazemos no IPAM da região do Xingu, essa combinação de eventos extremos com o desmatamento, colocou a temperatura da região e a umidade em uma condição que está prevista pelo IPCC para 2050", revela Moutinho. "2050 é agora no Xingu"
"A floresta é o que ainda segura boa parte das previsões catastróficas. Temos que parar o desmatamento, recuperar uma boa parte dessa bomba, para que a gente continue tendo esse sistema gigantesco de transporte de água funcionando", conclui. "Se não, vai ser muito difícil manter a habitabilidade dessas regiões. Consequentemente, do planeta.
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