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Trancistas formam novas gerações de cuidados ancestrais

A trancista Alessandra Silva, 30, moradora de Itapecerica da Serra (SP) - Divulgação
A trancista Alessandra Silva, 30, moradora de Itapecerica da Serra (SP) Imagem: Divulgação

Evelyn Vilhena, do Desenrola e Não me Enrola

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

25/07/2021 06h00

Mãe, filha, tia, prima e amigas reunidas no quarto, sala ou quintal de casa para trançar o cabelo. Por gerações, foi um momento de troca de saberes, não só de técnica, mas de vida.

De uma ação de resistência a um gesto de afeto, o ato de trançar o cabelo tem possibilitado oportunidades de fortalecimento financeiro para inúmeras mulheres e formado novas gerações de cuidados que se reconectam com esse saber ancestral, uma das tecnologias sociais importantes de serem lembradas neste Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, celebrado hoje (25).

Alessandra Silva, 30, moradora de Itapecerica da Serra, região metropolitana de São Paulo, aprendeu a trançar ainda criança com sua tia. "Olhando ela, fui pegando o jeito e ela me permitia cuidar do cabelo de minhas primas, e quase todos os dias eu ia tentando fazer uma trança diferente", recorda.

Para ela, o ato de trançar tem um significado ancestral, pois é um dom passado para aqueles que têm a responsabilidade de cuidar do Ori (com origem na língua Iorubá, significa cabeça), uma referência direta ao orixá tido como o deus da individualidade e intuição nas religiões de matrizes africanas, como o candomblé. "Sempre me senti muito honrada por isso", compartilha.

"A criança, quando vai sendo trançada pelo membro da família, é investida de afeto na construção do penteado, pois este vai sendo adornado com miçangas, fibras, fitas e/ou lãs coloridas que fazem mais do que enfeitar a cabeça, mas também de fortalecer o Ori, o corpo de afeto, porque o afeto vai sendo representado também na produção do trançado", explicam as pesquisadoras e educadoras, Lúcia Udemezue e Denna Souza, integrantes do Manifesto Crespo, coletivo de arte-educação formado por mulheres negras que dialogam sobre identidades, gênero e práticas antirracistas.

"A trança é uma tecnologia social artística ancestral"
Lúcia Udemezue e Denna Souza, do Manifesto Crespo

Saberes

Quando ficou desempregada, após deixar o trabalho como atendente em uma padaria em 2017, Alessandra viu nas tranças uma oportunidade de geração de renda. Suas primeiras clientes foram amigas e outras moradoras de territórios periféricos.

Trancistas formam novas gerações de cuidados ancestrais - Ale Brads / Divulgação - Ale Brads / Divulgação
Trancistas formam novas gerações de cuidados ancestrais
Imagem: Ale Brads / Divulgação

Durante o período da pandemia, a renda mensal de Alessandra diminuiu, mas não bruscamente, ela analisa que o cenário e o perfil econômico do seu principal público contribuíram para essa mudança. "A situação não estava favorável, e como a maior parte de minhas clientes são da quebrada, é algo que dá super pra entender, por muitas vezes abrimos mão de algo para poder ter outro", diz.

Alessandra ainda não abriu turmas para oferecer cursos, mas entre 2018 e 2020, já passou seus conhecimentos como profissional da área para fortalecer outras mulheres da quebrada. Seus ensinamentos fizeram a diferença para amigas que ela ensinou a trançar cabelos.

"Tem quatro pretas para quem eu dou suporte. Duas delas não estavam trabalhando, pois devido à pandemia foram dispensadas, uma delas trabalhava e me procurou por querer poder ter uma renda extra e com o tempo poder ficar só nas tranças, a outra é pra poder aprender a cuidar dos cabelos de suas quatro filhas", relata.

Segundo Lúcia Udemezue e Denna Souza, hoje, a trança é uma modalidade do campo da estética dos cabelos, que gera renda para muitas mulheres, mas também uma área que cresce cada vez mais cumprindo outros aspectos sociais.

"A trança como geração de renda pode ser sugerida também em contextos em que observamos a importância de autonomia financeira para sair de situações de violências e outras vulnerabilidades", explicam.

Tecnologia social

Monalisa Braga, 36, moradora do Jardim São Luís, em São Paulo, já formou 80 profissionais - Divulgação - Divulgação
Monalisa Braga, 36, moradora do Jardim São Luís, em São Paulo, já formou 80 profissionais
Imagem: Divulgação

Monalisa Braga, 36, moradora do Parque Santo Antônio, distrito do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, também acredita no poder de transmitir seus conhecimentos .

A trancista já trabalhou em uma rede de fast food e em uma loja de eletrodomésticos, mas foi no fazer do trançar que se encontrou, profissão que já exerce há mais de 10 anos. Ao todo, seus cursos de tranças já formaram cerca de 80 profissionais.

Sua primeira trança foi no cabelo da irmã mais nova depois de assistir um programa na televisão. "Eu conto isso para as pessoas e ninguém acredita, mas foi exatamente assim. Eu tive um sonho e no sonho acho que era Deus me explicando como que fazia e eu acordei trançando", explica.

Na época não havia redes sociais em que ela poderia ficar assistindo vídeos para aprender e não tinha ninguém para lhe ensinar. Foi então que ela usou seu gosto por hip hop para dar continuidade no processo de aprendizado.

"Eu tentava reproduzir as tranças dos caras, e na grande maioria eram homens, as meninas não trançavam tanto de raiz, eram mais tranças soltas", relembra Monalisa que teve como primeiras referências clipes de rap, R&B e artistas pretos como R-Kelly, Musiq Soulchild, Jay-Z e Snoop Dogg.

Pelo país

A trancista enfatiza que um dos públicos que mais procuram pelo seu curso são mães solo, mulheres pretas e periféricas. "Olhando friamente, aqui [no território] está concentrado muitas histórias de mulheres que carregam sozinhas suas famílias", conclui.

Monalisa já atendia em sua casa antes da abertura do salão em 2012, junto com seu irmão, mas foi a partir de 2015, que passou a oferecer cursos para outras mulheres.

Ao longo da trajetória como professora, ela já ministrou cursos para pessoas que vieram de outras cidades e estados, como Ceará, Alagoas, Minas Gerais, Rio de Janeiro, interior de São Paulo e Baixada Santista; além de também ter ido a outros estados ministrar workshops.

A pandemia de covid-19 gerou uma queda na sua renda, e encontrou como uma alternativa oferecer promoções aos clientes. "Um dos lemas do meu curso é não desistir de nenhum aluno e tem sido assim desde o início. Durante a pandemia eu continuei com os cursos presenciais, só que com a redução de meninas", explica.

Mulheres que não têm condições de pagar pelo curso recebem bolsas. "Entre alunas e ex-alunas que já concluíram o curso, a grande maioria já tem seu próprio negócio", explica.

Um processo de re-existência

E foi vislumbrando um crescimento pessoal e autonomia financeira que Williny Washington, 24, moradora de Lajeado, bairro de Guaianases, zona leste de São Paulo, buscou um curso de tranças em 2020, depois de deixar o trabalho com auditoria no começo da pandemia.
Ela conta que ficou sabendo do curso de tranças pelo instagram, ministrado por uma profissional de Artur Alvim e ao término do curso começou a atuar na área. Atualmente esta é a sua única fonte de renda.

"Já era uma vontade antiga minha. No começo da pandemia descobri a gravidez e decidi sair desse ramo por ter muito contato com público e sempre estar viajando. No curso da Carla [trancista] vi a oportunidade de trabalhar pra mim mesma e, assim, me sentir mais segura por não precisar viajar", relata Williny.

A maioria de suas clientes são do bairro onde mora. Ela divulga seu trabalho na internet, onde ela mesma produz conteúdos para ganhar visibilidade. Para ela, a trança carrega símbolos: "Um ato de resistência, negritude e estilo, e cada vez mais ganhando espaço entre nós", compartilha.

"Negras Cabeças": exposição gratuita e virtual

O cuidado ancestral com os cabelos e o fortalecimento da identidade cultural de penteados e adornos foi o ponto de partida para a artista Íldima Lima, conhecida como Illi, desenvolver uma série de ilustrações chamada "Negras Cabeças". As imagens representam mulheres das etnias betsimisaraka, mangbetu, suri, mursi, mwila, mbalantu, fulani e himba e foram lançadas no mês em que se celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. A exposição gratuita fica disponível online até dezembro de 2021.

"É um olhar para a ancestralidade. Uma reverência às linguagens e tecnologias utilizadas por esses grupos para codificar mensagens através dos penteados, dos adornos, a fim de comunicar status e situações de interesse daqueles grupos, tendo se constituído com traços culturais definidores ao longo do tempo. Não à toa a cabeça é usada como suporte dessa conexão", disse Illi.

"Negras Cabeças": Exposição da artista visual Illi