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Jovem descobre que precisa de transplante e transforma dor em luta

Bárbara Helena Turquia Mendes, 29, luta por doações de órgãos - Acervo Pessoal
Bárbara Helena Turquia Mendes, 29, luta por doações de órgãos Imagem: Acervo Pessoal

Giacomo Vicenzo

Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP)

29/07/2021 06h00

"Doar órgãos é um ato belíssimo de amor, que pode ressignificar a dor. Uma pessoa irá embora, mas dará uma nova chance para alguém que espera", diz a ativista mineira Bárbara Helena Turquia Mendes, 29, que há cerca de um ano descobriu a necessidade de um transplante pulmonar.

O transplante pulmonar é considerado um dos mais difíceis em todo o mundo e no cenário de pandemia de covid-19 enfrenta queda de 62% no número de procedimentos, a mais brusca queda entre os transplantes no Brasil, de acordo com dados do RBT (Registro Brasileiro de Transplantes).

O estado de saúde de Mendes vem de uma condição genética rara, que lhe compromete mais de 70% da capacidade pulmonar. Pacientes que estão na fila do transplante de pulmão têm vida média de até dois anos. Bárbara ainda luta para entrar nessa fila e faz exames que irão definir o seu lugar na espera por novos pulmões.

Nas redes sociais, suas batalhas e angústias antes silenciosas e restritas ao círculo familiar, agora são compartilhadas com mais de 13 mil seguidores no Instagram, que acompanham sua rotina, sonhos e obtém informações sobre o transplante de órgãos transmitidas pela jovem, que se tornou uma ativista e cria círculos de apoio para quem passa por condições semelhantes e/ou quer se engajar na causa.

"Sair de casa é muito complicado, mesmo usando o oxigênio. Minha vida agora é na internet", diz.

Lutando como uma garota rara

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Bárbara Helena Turquia Mendes e sua mãe
Imagem: Acervo Pessoal

É com Marie no colo, cadelinha da raça Pinscher de sete anos, que Bárbara conta para Ecoa como é sua rotina na casa em Nova Lima (MG), a cerca de 23 quilômetros de Belo Horizonte, onde mora com a mãe, o padrasto e os irmãos. A aceitação da doença a levou ao lugar de ativista em prol da causa de doação de órgãos.

Entender sua condição de saúde com a piora do quadro no fim de 2020 foi sua primeira barreira. Bárbara vivia um momento de independência morando sozinha, mas precisou voltar para a casa da família quando as tarefas básicas lhe tiraram o fôlego.

"Meu estado já estava muito grave e não dava para ficar sozinha. Acreditava que algo ainda poderia reverter isso, mas não tinha a dimensão da minha doença."

Bárbara sofre com DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica), o quadro, no caso da jovem, é causado por uma deficiência da enzima alfa-1, que causa uma espécie de 'agressão aos tecidos pulmonares' e enfisema.

Entre a esperança de novos pulmões e a série de exames que realiza, Bárbara segue firme, produz conteúdo para seu canal no Youtube e para sua página Lutando Como Uma Garota Rara nas redes sociais, além de colaborar em blogs sobre o tema.

E o conteúdo que dá rosto aos números de quem precisa de um transplante de órgãos tem surtido efeito. "Pessoas apareceram no meu perfil comentando que se declararam doadores depois de começar a acompanhar os conteúdos."

Para Bárbara ainda faltam informações, principalmente quando se trata de morte encefálica, quando não há mais atividade cerebral, situação em que muitos órgãos podem ser destinados ao transplante antes que os aparelhos que mantêm as funções vitais sejam desligados.

"Com a morte cerebral não tem mais chance de a pessoa voltar e ainda há muita gente que confunde essa condição com o coma e nutrem esperanças falsas. Os médicos têm um papel muito importante de falar sobre o transplante no momento do óbito", diz a ativista.

Entre as informações que costuma difundir, Bárbara explica que existem alguns boatos que circulam com frequência. "Houve épocas em que se dizia que estavam roubando órgãos e vendendo, mas o sistema de doação de órgãos é muito rigoroso e é feito pelo SUS. As pessoas podem confiar", diz a ativista.

"Somos o país mais justo em doação de órgãos"

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Ilustração da jovem Bárbara Helena Turquia Mendes, que espera um transplante de pulmão
Imagem: Acervo Pessoal

Para José Huygens Garcia, médico especialista em transplante de fígado e presidente da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), o Brasil é o país que tem um dos melhores programas de doação de órgãos. "É o mais justo do mundo em transparência e justiça social, cada órgão na fila é pelo grupo sanguíneo, particularidades e gravidade. Não existe a menor possibilidade de alguém furar a fila", explica.

Em números absolutos, o Brasil está em segundo lugar na quantidade de doadores e em 26º em doadores por milhão de habitantes. "É importante frisar que só há transplante se houver doadores de órgãos.", explica o médico.

Em 2019 o número de doadores foi de 18,1/milhão de habitantes, e em 2020 15,1/milhão de habitantes. No primeiro trimestre de 2021 a queda na taxa de doadores foi de 26%, de acordo com dados do RBT.

Uma grande barreira está justamente no momento de luto das famílias que perdem o ente querido. "A recusa familiar foi de 41% no primeiro trimestre. Isso quer dizer que aquele potencial doador, que estaria com tudo pronto para o procedimento recebeu negativa pela família", explica Garcia.

Mesmo que alguém se declare como doador de órgãos em vida, a decisão depois da partida sempre será da família. Garcia explica que o momento de pandemia de covid-19 que lotou hospitais, também fez com que potenciais doadores padecessem em condições em que os órgãos não pudessem ser transplantados.

"Viva o SUS!"

No Brasil há mais de 44 mil pessoas na fila de espera de transplante de órgãos, de acordo com os últimos dados do RBT. De todos os transplantes realizados, cerca de 95% são financiados integralmente pelo SUS.

"Na fila não se identifica quem é SUS ou plano de saúde privado, sendo assim, [o processo é] imune a qualquer tipo de corrupção. Caso o transplante não exista no estado em que o paciente reside, o próprio SUS irá financiar para que ele tenha o acesso completo em outro lugar por meio do TFD (Tratamento Fora do Domicilio)", explica Garcia.

Esse é o caso de Bárbara, que já faz a maior parte das avaliações médicas em São Paulo e na capital do estado em que mora para conseguir o seu lugar na fila. "Mesmo que o transplante seja pelo SUS, o resto é tudo por minha conta. É tudo muito caro e preciso estar perto do hospital e com alguém da minha família junto", explica.

Para ajudar a custear as despesas das viagens, e por vezes a acomodação, Bárbara criou uma loja online em que vende itens como camisetas e outros acessórios. O transplante de pulmões só é realizado nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul, e é essencial que o paciente more próximo dos hospitais que fazem esses procedimentos, pois os órgãos têm pouco tempo para serem transplantados.

Desde 1997 foram realizados 125.985 transplantes em todo o Brasil, os de pulmão representam cerca de 1% (1.320) desse total. "A margem limite para o transplante de coração e de pulmão são seis horas, mas o de pulmão é ainda mais difícil, pois é um órgão que se comunica com o meio ambiente e muitos pacientes com morte cerebral têm pneumonia, o que faz com que o órgão seja descartado da elegibilidade para o procedimento.", diz o presidente da ABTO.

Triatleta após o transplante

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Patrícia Fonseca, 35, tornou-se triatleta após passar por transplante de coração
Imagem: Reprodução/Instagram

Saber que precisa de um transplante de órgãos é uma notícia dura e ainda mais difícil é viver sem ter referências de como pode ser a vida durante a espera pelo transplante. "As pessoas que estão vivendo nessa situação não têm uma referência. Sinto que hoje sou parte dessa referência para trazer ânimo para outros como eu", comenta Barbara.

Foi com seu ativismo, que a jovem não só conheceu, mas também se engajou aos projetos da triatleta e economista Patrícia Fonseca, 35, que é fundadora da ONG Sou Doador.

"Passei por essa trajetória e também não tinha a menor ideia de como seria a minha vida ou qualidade dela depois do transplante. Não tive informações de outros transplantados e essa lacuna não impacta só o número de doadores, mas também de quem está na fila da espera, que não tem referências que mostram que há uma vida boa nos esperando após o procedimento. Isso dá forças para quem espera", comenta Fonseca.

Fonseca, que nasceu com um problema congênito cardíaco, já esteve na lista de espera, mas hoje ostenta medalhas de provas esportivas para transplantados sobre o peito que recebeu um coração novo há cerca de cinco anos.

"Com pouco mais de um ano já estava fazendo corridas de rua e nadando. Em 2017, participei da primeira Olimpíada [para transplantados] em Málaga, na Espanha, a primeira transplantada de coração brasileira a participar do evento", conta.

"Fui da menina que assistia à educação física da arquibancada para uma triatleta, tudo por conta de uma doação de coração que alguém poderia ter dito não. Minha vida e da minha família, que não me perdeu, foram salvas por esse transplante", completa.

A conscientização para que existam mais doadores está entre as principais causas da ONG de Fonseca, que luta pela aprovação do projeto de Lei Tatiane (PL 2839/2019), que tem como proposta inserir a discussão sobre doação e transplante de órgãos e tecidos nas escolas e faculdades de todo o país. "A PL leva o nome de uma amiga que estava na fila de doação de órgãos, mas não resistiu.", diz Patrícia.

Tenho pensando em virar atleta depois do transplante também. Nós que estamos na fila e temos uma doença crônica já vivemos em um campeonato, que poucos veem, estamos lutando para chegar na linha final que é o transplante e o nosso treino é a vida. Bárbara Helena Turquia Mendes, ativista