"Eu, Daniel Blake" reflete sobre desafio de não sucumbir em tempos de crise
Nos filmes, são os super-heróis que falam como nós gostaríamos de falar. Aprendida cedo nas aulas de roteiro, esta lição ajuda a não engessar diálogos quando se quer soar o mais realista possível; o revés é que ela diz, também, ainda que implicitamente, que a coragem não é para qualquer pessoa. Na contramão, o longa-metragem de Ken Loach "Eu, Daniel Blake" (2016) apresenta personagens carentes e ordinários, banais e perigosamente cativantes. Gente que fala com a coragem crua e uma paixão humana.
Daniel Blake é um carpinteiro que teve um ataque cardíaco e, por isso, não tem permissão médica para voltar ao trabalho. Ainda assim, Blake se depara com uma série de processos burocráticos que impedem que ele continue recebendo um auxílio financeiro do governo enquanto não pode trabalhar. Daniel questiona cada obstáculo colocado à sua frente; desde a apresentação do filme no consultório em que perguntas protocolares tornam-se uma forma passivo-agressiva de ameaça contra o protagonista até a espera de quase duas horas no telefone para falar com um atendente, que avisa a Blake que precisa esperar uma ligação para poder contestar a decisão que já recebera por carta (e foi o motivo da ligação, para começo de conversa).
A história do filme ganha uma nova camada quando Blake conhece Katie, uma mãe solteira de duas crianças que foi expulsa pelo seu senhorio e, depois de um tempo em um abrigo, conseguiu uma casa longe de toda sua rede de apoio, familiares e amigos. Eles se encontram em um desconforto compartilhado, de quem é vítima da negligência do Estado que os coloca em condições cada vez mais miseráveis e se recusa a ouvi-los. A cena em que eles se conhecem se resolve em uma frase: não é possível que as circunstâncias não sejam capazes de mudar normas. Então, Daniel e Katie tornam-se ouvidos e ombros amigos.
É também interessante notar como o drama é bem sucedido em seus mínimos detalhes, por exemplo, como o tempero de bom humor de Blake muda de sabor ao longo da narrativa. Se no começo as graças do protagonista são o alívio em meio a situações que geram insegurança e sofrimento, o sentimento evolui para uma espécie de angústia, sendo impossível conter a indignação com que pessoas em vulnerabilidade social são tratadas.
Com o aumento da insegurança alimentar em muitos lares brasileiros, as cenas de fome de Katie tornaram-se ainda mais devastadoras. Primeiro, há uma sequência de jantar, em que o macarrão rende três pratos, que ela insiste que sejam de Daniel e das crianças, enquanto diz que prefere uma fruta — e morde com a mão trêmula uma maçã. A filha mais velha entrega: "Foi o que você disse ontem. E anteontem."
Uma visita ao "food bank", espaço de doação de alimentos, rende uma das cenas mais tocantes do filme, premiado com Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2016 e BAFTA Melhor Filme em 2017. Katie se apoia discretamente nas prateleiras até desesperadamente abrir uma lata e comer um alimento cru, ímpeto que é seguido de um terrível choro de constrangimento. Com ela, Ken Loach nos questiona: o que estamos fazendo a favor da humanidade? O diretor abraça o cotidiano e se coloca no local de escuta. "Eu, Daniel Blake" é um filme com sotaque britânico carregado que diz muito sobre o Brasil contemporâneo.
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