Designer Julia Vidal resgata ancestralidade por meio da beleza e da costura
Quando Ecoa abordou Julia Vidal pela primeira vez, ela se desculpou pelo pouco tempo que teria para conversar sobre seu negócio e a filosofia que o rege. Isso porque, com a visita de parentes de comunidades amigas, precisaria se ausentar em breve para se concentrar em rituais da etnia xucuru.
À frente da escola de moda pluricultural Ewa Poranga e da marca Julia Vidal - Etnias Culturais, Julia assina projetos que procuram ressignificar o que normalmente se concebe como moda brasileira.
"Como diria Aldir Blanc, 'o Brasil não conhece o Brasil'. A maior parte dos criadores de moda não sabe o que é a identidade da moda brasileira e não está apta para criar algo diverso e pluricultural, que respeite os povos indígenas e afrodescendentes", provoca.
Formada em design gráfico com especialização em estamparia têxtil, pós-graduada em história afro-brasileira e mestre em relações etnicorraciais, ela conta que a entrada no mundo da moda foi impulsionada pela busca por uma marca mais empática e confortável.
Seu papel nesse setor lhe rendeu reconhecimento e trabalhos significativos, o que inclui vestir figuras como Taís Araújo e João Donato e ganhar prêmios como o internacional "Empresas inspiradoras ao redor do mundo" pela Shell Live Wire. Mas vai além: ele deu corpo a projetos socioeducativos que tanto empoderam como desafiam ao promover uma nova forma de pensar e fazer a moda.
Pluriculturalismo: redescobrindo identidades
O interesse pela conexão entre Brasil e África impulsionou a desconstrução do seu modo de desenhar e costurar roupas. Foi a partir do mergulho teórico proporcionado pelo mestrado que seus trabalhos ganharam força e dois de seus quatro livros publicados tomaram forma - dentre eles o livro de colorir "Quintal Étnico: cores e vibrações afro-brasileiras".
Mas houve, ainda, um segundo movimento de descolonização do trabalho de Julia: o processo de retomada de sua identidade indígena, impulsionado por um episódio doloroso no qual a artista se deparou com as memórias esparsas de sua avó, diagnosticada com Alzheimer.
"Por ironia de uma doença, da memória de minha avó, surgiu o Marajó inteirinho", brinca ela. Na ocasião, Julia conta que a identidade que sua avó ocultou por tantos anos ficou exposta: "Ela falava muito sobre lembranças que tinha da rede e me pedia coisas como cupuaçu. Pesquisei mais coisas a partir de tudo o que ela me falava e descobri que pertencemos a etnias indígenas, como à Muaná, hoje extinta. A partir disso, resgatar essa ancestralidade foi algo ainda mais importante para o meu trabalho", afirma.
Ewa Poranga e a beleza como foco
Com o movimento de retomada, Julia, que assina o curso "Narrativas afro-indígenas na moda brasileira" no Instituto Europeu de Design (IED), ressignificou algumas visões já bem trabalhadas no modo de fazer moda.
A conexão com os movimentos indígenas foi um convite de reconexão com a mata, com o rio e tudo o que os cerca. "Passei a conhecer mais sobre processos como o de tingimento com o barro e a produção de grafismos. Foi uma lição de como a roupa é concebida dentro deste processo indígena", explica.
É esse um dos aspectos que regem a identidade da escola Ewa Poranga, um projeto que tomou forma durante a pandemia, em formato EAD, e que tem a colaboração de outros artistas e artesãos. "A Ewa Poranga me tornou criança novamente. É um novo processo de entendimento e de relação com nosso entorno, nossos materiais. É sobre permitir o encantamento pela natureza e pelo outro, negando essa forma tóxica de viver trazida pelas sociedades que vivem na escassez e se conectando verdadeiramente com o Brasil", explica.
O encantamento que Julia cita é um dos pilares da filosofia da escola: "éwa poranga" quer dizer, em idiomas como o Tupi antigo e o Yorubá, beleza - algo que ela, enquanto estudante de design, não pôde reconhecer nos livros. "Essa estética era apresentada somente como exótico, sem estar relacionada à intelectualidade, às tecnologias trazidas por nossos ancestrais e à beleza viva que existe nela".
A escola trouxe, então, uma nova visão a partir dos tecidos, das tapeçarias e das tipografias. Com ela, Julia evidenciou uma nova forma de pensar a escrita, o artesanato e a própria intelectualidade. Muito do que se ensina na Ewa Poranga tem uma conexão direta com provérbios e sabedorias ancestrais.
Ela explica que, para a pessoa indígena, a arte é funcional. E pensar em uma moda indígena é personificar a conexão do sujeito com aquilo que ele veste, pensando na beleza enquanto algo inerente à nossa natureza. "A dimensão humana é sensível à beleza. Ela nos conecta, mesmo quando somos diferentes. A beleza nos proporciona a possibilidade de construção e de reconexão a partir de um movimento interno. É uma das formas de materializar a nossa espiritualidade".
Para ela, a moda tem ainda o poder de incorporar a justiça social, substituindo a apropriação pelo princípio de coexistência. Sua fórmula é: "Não se aproprie: crie em conjunto, dialogue. Não apague e não destrua, mas construa com outras mãos. Se não há tempo para criar, recicle; pois a criação com povos marginalizados é um processo que deve ser de construção continua, com tempo e muita escuta diante de uma nova visão de mundo e experiência do saber e fazer".
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